O “novato” Barroso lidera, no Supremo, as mudanças
que visam a tornar as punições mais efetivas
O ministro
do Supremo, relator do mensalão, diz que o Tribunal está pronto para enfrentar
os processos contra os políticos do petrolão e defende o fim do foro
privilegiado.

Como a
presidente Dilma Rousseff hesita há meses a nomear o sucessor de Joaquim
Barbosa, Barroso ainda é “o novato”, na definição do veteraníssimo Marco
Aurélio Mello, sempre mordaz. ...
As opiniões
assertivas e logicamente impecáveis de Barroso, reconhecido como um dos maiores
constitucionalistas do Brasil, incomodam alguns dos ministros do Supremo, um
tribunal de notáveis – e de notáveis vaidades. Nesta entrevista, Barroso, que
passou a relatar o mensalão após a aposentadoria de Barbosa, reflete com
cauteloso otimismo sobre a situação difícil do país, explica como o Supremo
está tentando punir os poderosos e defende o fim do foro privilegiado para
parlamentares e ministros.
ÉPOCA – O
brasileiro convive com uma economia estagnada, um megaescândalo de corrupção na
Petrobras e um governo que parece paralisado por tudo isso. Quão profunda é a
crise pela qual passamos?
Luís Roberto
Barroso – O Brasil está vivendo uma crise de amadurecimento. Decorre de uma
cidadania que se tornou mais consciente, mais exigente e, de certa forma, mais
participativa. E isso é bom. O problema é que as instituições e os serviços
públicos ainda não conseguiram se ajustar adequadamente a essas novas demandas.
Mas nós avançamos. Para perceber isso, é preciso enxergar o Brasil em três
planos distintos: um plano político, um plano econômico e um plano
institucional. No plano político, temos vivido as turbulências de uma eleição
que dividiu o país de uma maneira muito relevante – não apenas dividiu, mas o
polarizou. As pessoas saíram ressentidas das eleições: um lado ressentido com o
outro. Existe a turbulência econômica, reconhecida por todos. Porém, do ponto
de vista institucional, o país vai muito bem. Nós temos democracia e nós temos
respeito às regras do jogo. Ou seja, amadurecemos institucionalmente.
ÉPOCA – Não
é pouco? No plano concreto, muitas pessoas estão, em resumo, infelizes com a
vida que levam.
Barroso –
Pode parecer pouco, mas o Brasil sempre foi historicamente o país do golpe de
Estado, da quartelada, da quebra da legalidade constitucional. E nessa matéria
nós superamos todos os círculos do atraso. Já vivemos há 30 anos com
estabilidade institucional – apesar de muitas crises, desde a destituição de um
presidente da República até o abalo representado pela Ação Penal 470 (o
mensalão).
ÉPOCA –
Pensar no longo prazo, seja no passado ou no futuro, nos ajuda a pôr os fatos
políticos no devido contexto. Mas e o presente?
Barroso – No
longo prazo, são as instituições que contam. São elas que mantêm o estado de
direito. A política se move por objetivos de curto prazo; a economia, muitas
vezes, também. As instituições, no presente, somos nós todos. O Brasil tem
progredido muito do ponto de vista institucional. Há muitas coisas a mudar, mas
há coisas boas a celebrar.
ÉPOCA – Essa
maturidade institucional será suficiente para suportar os possíveis choques que
se avizinham, diante dessa combinação de crises?
Barroso –
Não tenho nenhuma dúvida. Os Poderes da República vivem um momento de especial
equilíbrio. No Executivo, a presidente foi eleita democraticamente, e nós já
não vivemos no Brasil aquela tradição de hegemonia autoritária do Executivo. O
Legislativo vive uma certa afirmação de autonomia. O Judiciário deixou de ser
aquela torre de marfim inacessível. Passou a ser um bom garantidor de direitos
individuais e de proteção às instituições. Existem disputas pontuais, mas isso
existe em todas as democracias.
ÉPOCA –
Casos de corrupção, como o desvendado na Operação Lava Jato, passam a sensação
de que prevalece uma degradação institucional no Brasil. É uma impressão
correta?
Barroso –
Acho que o Brasil está se passando a limpo. Quando eu falo de ética, me refiro
tanto à ética pública quanto à privada. É preciso chamar a atenção para a
existência de uma certa moral dupla, em que as pessoas exigem o que nem sempre
estão dispostas a dar. A mudança ética no Brasil tem de ser pública e privada.
ÉPOCA – A
expressão “passar a limpo” já foi muito usada, e o Brasil continua,
aparentemente, sujo. Não há um certo moralismo paralisante nela?
Barroso – É
inegável que temos avançado na depuração ética. Às vezes não na velocidade que
a gente gostaria, mas na direção certa. Vou dar um bom exemplo. Quando a
apuração da Ação Penal 470 começou, em 2005, havia um grande ceticismo. Ninguém
achava que aquilo fosse dar em coisa alguma. A verdade é que resultou em penas
relevantes de prisão para mais de duas dezenas de pessoas, entre políticos
importantes e empresários importantes. Portanto, só isso já foi uma mudança de
patamar no país.
ÉPOCA – O
clichê de que o brasileiro tem memória curta procede, então?
Barroso – Na
vida, as pessoas realizam os ganhos rapidamente, mas remoem as perdas durante
muito tempo. A partir do momento em que se teve o ganho, no caso a condenação
efetiva de muitas pessoas, vem o passo seguinte: “Ah, mas ficaram presas por
pouco tempo”. Já é o dia seguinte de uma mudança de paradigma. Se ficaram
presas por pouco tempo, isso se deve às leis atuais – e as leis têm de valer
para todos. O interessante é que nós fomos do ceticismo de que não haveria
qualquer punição a uma certa insatisfação de que a punição que existiu foi
menos duradoura do que se imaginava. A prova de que nós mudamos de patamar é
que agora, quando se discute o assim chamado petrolão, ninguém mais está
achando que não vai dar em nada, que ninguém vai ser punido, que ninguém vai
ser preso.
ÉPOCA – O
julgamento do mensalão realmente mudou o Supremo e os processos criminais no
Brasil? Há quem tema que o Supremo ponha fim à Lava Jato.
Barroso –
Não é o caso. A impunidade não é mais a regra. Na Ação Penal 470, houve algumas
mudanças importantes. No caso de crime de peculato, que é o desvio de dinheiro,
para progredir de regime prisional o condenado tem de devolver o dinheiro
desviado. Porque a condenação é uma pena de prisão mais uma multa. Também tenho
me empenhado para moralizar a prisão domiciliar. Prisão domiciliar é prisão.
Não pode viajar por aí. É importante moralizar a prisão domiciliar: ela é uma
alternativa humanitária às condições degradantes dos presídios. O país está um
pouco menos tolerante com infrações penais de uma maneira geral, inclusive a
dos poderosos.
ÉPOCA – Com
as denúncias de políticos no petrolão, o Supremo será exigido mais uma vez. O
Tribunal dará conta?
Barroso –
Não há por que duvidar. O Supremo tem contribuído muito para uma arrumação do
Direito Penal no Brasil. O Direito Penal deve ser moderado, mas deve ser sério.
Porque, numa democracia, uma repressão penal proporcional, respeitado o devido
processo penal, é indispensável para a vida civilizada – e para a própria
proteção dos direitos fundamentais das pessoas. Temos tido avanços no sistema
penal. Não com a construção de um estado policialesco, mas com algumas mudanças
que quebram esse paradigma de impunidade.
ÉPOCA – Por
exemplo?
Barroso – No
Supremo, nós passamos do plenário para as turmas o julgamento dos processos
criminais. Pode parecer pouco, mas se desobstruiu o plenário. Nós julgamos, em
2014, 35 ações penais e 12 julgamentos finais. Isso apenas na primeira turma,
em que atuo. É mais do que o plenário havia julgado em muito tempo. Como essas
ações que chegam ao Supremo são quase todas contra parlamentares, estamos
superando a impunidade que prevalecia. Uma segunda mudança importante, também
para evitar a impunidade, diz respeito ao parlamentar que renuncia ao mandato
para fugir do julgamento no Supremo. Entendemos que esse estratagema não pode
valer. O parlamentar, mesmo se renunciar, será julgado pelo Supremo.
ÉPOCA – Se a
lei vale para todos, não seria o caso de acabar com o foro privilegiado?
Barroso – Eu
acho que o capítulo final dessa história será uma redução drástica do foro. O
foro privilegiado deve existir somente para presidente da República, para o
vice-presidente e para os demais chefes de Poder. A médio prazo, eu seria um
defensor dessa mudança. Depende do Congresso. Minha proposta é que se crie uma
vara federal em Brasília apenas para julgar esses casos. Caberia recurso ao
Supremo. Certamente acho muito ruim que isso fique no Supremo.
Fonte: Por Diego
Escosteguy, revista Época. Foto: Sergio Lima/Folhapress - 21/02/2015