Com
custo de transição alto, modelo de capitalização, se aprovado, deverá ser
apenas um dos pilares da nova Previdência
Um dos temas mais polêmicos durante a primeira
fase de tramitação da proposta de reforma da Previdência na Comissão de
Constituição e Justiça (CCJ) da Câmara, a introdução do sistema de
capitalização na Previdência, conforme prevê a PEC nº 6, será aprofundada na
Comissão Especial, cujo objetivo é analisar o mérito das mudanças apresentadas
pelo governo. A equipe econômica praticamente já descartou a adoção de um
sistema puro de capitalização, à moda chilena, tanto pela rejeição que
desperta, como pelo custo de transição do atual modelo de repartição para o de
capitalização.
A conta para fazer a transição seria tão alta
que causaria um problema fiscal ainda maior do que o que se pretende combater
com a reforma. Especialistas em Previdência estimam que o país precisaria
investir o equivalente a duas vezes o Produto Interno Bruto (PIB), mais de R$
12 bilhões, ao longo de um período que pode variar entre 35 e 45 anos, para
cobrir pelo menos duas gerações.
A razão da despesa é que, no regime de
capitalização, a aposentadoria é pré-financiada durante o período de atividade
do trabalhador, por meio de depósitos em contas individuais, que são investidos
e rendem juros, ou seja, a pessoa está poupando para sua própria aposentadoria.
Já no regime atual, de repartição, também conhecido como “solidário”, os
benefícios são pagos com as contribuições de empregados e trabalhadores
arrecadadas no mesmo mês de desembolso, mais o aporte do governo, que completa
o que falta com recursos do Tesouro Nacional. Uma vez aprovado o sistema de
contas individuais, o pacto entre as gerações é quebrado, mas o passivo de quem
estava no sistema antigo tem que ser liquidado.
“Seria necessário honrar o compromisso com os
30 milhões que já estão aposentados, pagar proporcionalmente ou indenizar os
cerca de 60 milhões que estão no meio do caminho, e isso a partir da
convivência com o novo sistema, que não dá para mensurar, pois não sabemos como
vai se comportar o mercado de trabalho”, explica o matemático, especialista em
previdência pela Fundação Getúlio Vargas, Luciano Fazio.
O consultor legislativo Pedro Ney, autor do
livro Reforma da Previdência. Por que o Brasil não pode esperar? calculou o
custo em R$ 407 bilhões, para o Regime Geral, e em R$ 15,7 bilhões para o
regime dos servidores federais, apenas no primeiro ano de transição. Para se
ter uma ideia, no ano passado, somados, o deficit do Regime Geral, do setor
privado; do Regime Próprio dos servidores públicos, e dos militares foi de R$
290,2 bilhões.
Obsessão
Primeiro país a instituir um sistema de
capitalização puro, o Chile passou a ser referência nos debates no Brasil pelo
discurso do ministro da Economia Paulo Guedes, que lecionou no Departamento de
Economia da Universidade do Chile no início dos anos 80, quando José Piñera,
irmão do atual presidente do Chile, e ministro do ditador Augusto Pinochet
(1979-1990), criou o sistema, em 1981.
Os trabalhadores chilenos passaram a depositar
10% dos salários em contas individuais conhecidas como AFP (administradoras
privadas de fundo de pensão). À época, a conjuntura econômica do país,
considerando taxa de juros e população economicamente ativa, favoreceu a
transição. Com as mudanças no cenário econômico, porém, os aposentados passaram
a receber remunerações consideradas miseráveis. Por isso, em 2008, a então
presidente Michelle Bachelet criou um fundo estatal para garantir uma pensão
básica, chamado Pilar Solidário.
“A reforma foi feita em uma época em que os
juros estavam altos e gerou benefícios para a economia como um todo, como
melhora da situação fiscal, o que fez os juros baixarem. Como consequência, os
valores aportados foram corrigidos com juros menores, gerando benefícios muito
baixos. Teria que ter corrigido a alíquota de contribuição ou os tipos de
investimentos, expondo mais ao risco, ou ambos”, avalia o coordenador do curso
de finanças do Ibmec, William Baghdassarian, que vê vantagens no modelo
chileno, mas acha que o governo tem que aprender com as lições do vizinho.
“Será preciso criar mecanismos para calibrar alíquotas e a forma de investir os
recursos ao longo do tempo, além de instituir a renda mínima”,
opina.
Para a Nery, há uma obsessão com o modelo do
Chile na discussão sobre a reforma da Previdência, quando há outros caminhos a
serem considerados. Na opinião do especialista, há pouca dúvida de que a
qualidade de vida e o crescimento econômico do Chile, destoantes dos vizinhos,
se deve, em parte, à poupança chilena. “O aumento da poupança nacional por esse
tipo de modelo tende a reduzir estruturalmente os juros, elevar a taxa de
investimento e estimular a infraestrutura”.
Opções
Fora do raciocínio binário capitalização ou
repartição, direita ou esquerda, situação ou oposição, é possível encontrar
modelos híbridos que podem enriquecer os debates na Comissão Especial. Segundo
Nery, vários países possuem alguma forma de capitalização obrigatória no
financiamento da sua previdência, como Colômbia, Uruguai, Bolívia, Peru, China,
Estados Unidos, França, Índia, Indonésia, Japão, México, Arábia Saudita, Reino
Unido e Turquia.
“Nosso grande problema é o deficit de
transição. O Brasil tem um dos sistemas mais desequilibrados no mundo. Não
conheço quem tenha feito transição para capitalização em uma situação parecida
com a nossa. Por isso, as experiências mais interessantes são as das contas
nocionais”, opina Nery.
Esse modelo também ganhou espaço nos estudos da
equipe econômica. O primeiro país a adotá-lo foi a Suécia, em 1998, onde o
deficit da Previdência chegou a 2,5 vezes o PIB nos anos 90. Neste sistema, são
criadas contas individuais para cada contribuinte, mas o financiamento da
previdência ocorre pela repartição, ou seja, as contas existem para relacionar
os aportes financeiros de cada um ao valor do seu benefício no futuro, mas as
contas não possuem lastro em ativos reais. Por trás dessa contabilidade, está
um fundo coletivo alimentado pelo recolhimento das contribuições de todos.
Nas contas nocionais, os recursos não são
aplicados no mercado financeiro. Geralmente, a correção é feita com base na
taxa de crescimento dos salários. Na prática, as contribuições dos
trabalhadores na ativa financiam os benefícios dos aposentados, mas com mais
transparência. É uma tentativa de manter a solidariedade do sistema de
repartição e eliminar as injustiças embutidas. Letônia, Noruega, Polônia e
Itália adotam esquemas parecidos.
Nery considera interessante, e um contraponto
ao modelo chileno, o esquema de capitalização da Austrália. De acordo com as
regras do superannual, como os australianos se referem ao sistema, os
empregadores recolhem as contribuições dos trabalhadores e as depositam em
administradoras indicadas por eles, que se dividem em cinco perfis diferentes,
de acordo com o nível de exposição ao risco. Os aportes dos empregadores são
voluntários, mas eles recebem incentivos tributários, se fizerem. Além disso,
para incentivar a poupança, a partir de um piso e até um teto, o governo também
contribui para a conta do trabalhador.
Muitos países da América do Sul, segundo Nery,
seguem o modelo em pilares, recomendado pelo Banco Mundial: um pilar não
contributivo, como uma renda básica para o idoso; um obrigatório em
repartição, cobrindo parte da renda; um obrigatório em capitalização; e outro
facultativo em capitalização. É o caso do Uruguai, por exemplo, que, para
encarar o impacto fiscal do custo de transição, recorreu a um empréstimo do
Banco Mundial.
Escolhas
Em audiência pública na CCJ, o secretário
especial da Previdência, Bruno Bianco, disse que a PEC não cria a
capitalização, mas autoriza a instituição desse sistema. Segundo ele, o governo
vai garantir “uma camada de solidariedade para que ninguém ganhe menos do que o
salário mínimo”, caso a poupança do contribuinte não seja suficiente. Ele
afirmou ainda que a capitalização, a ser detalhada em Lei Complementar, poderá
ser opcional e não vai acabar com o regime de repartição.
Uma das possibilidades em estudo pela equipe
econômica é permitir que cada um escolha, no momento de ingresso no sistema,
ficar no modelo de repartição ou optar pela capitalização, e garantir uma renda
básica mínima para quem escolheu a conta individual, caso sua renda não tenha
permitido poupar o suficiente para garantir o salário mínimo na aposentadoria.
Os críticos temem pelo destino do salário mínimo, e essa é uma outra discussão,
também complexa.
Fonte: correio Braziliense