Cenas desumanas mostram como a situação dos presídios do Nordeste está
prestes a sair de controle
Internos no presídio de
Alcaçuz. São 800 presos num lugar onde caberiam, no máximo, 600 (Foto: Carlos
Santos/DN/D.A Press)
"É muito desumano”,
resumiu o ministro ao inspecionar, em abril de 2013, a penitenciária
estadual de Alcaçuz, localizada a cerca de 30 quilômetros de
Natal, Rio Grande do Norte. Presidente do Supremo Tribunal Federal e do
Conselho Nacional de Justiça (CNJ), Barbosa viu urina escorrendo pelas paredes,
sentiu o forte cheiro de fezes e passou por celas e corredores escuros e sem
ventilação. Quase um ano depois, um novo relatório do CNJ, obtido por ÉPOCA,
referente a uma vistoria feita em dezembro, mostra que
o drama observado pelo
ministro continua. Pior ainda, o documento acrescenta novas tintas ao descaso.
...
As visitas íntimas ocorrem
de “forma promíscua” no meio do pavilhão. Apenas oito agentes penitenciários
cuidam diariamente de 800 internos. Confinados sem atendimento médico, os
presos sofrem com doenças infecciosas, como a tuberculose. O quadro não deixa
dúvidas de que, se nada for feito rapidamente, o Rio Grande do Norte é forte
candidato a se tornar o próximo Maranhão. O Estado potiguar, porém, não é o
único postulante na fila. Em Pernambuco, há unidade prisional com apenas dois
agentes penitenciários para cuidar de 2 mil presos. Na falta de pessoal, o
próprio bandido assume a chave da cadeia e impõe a lei do mais forte, mandando
aplicar até surra.
Esse cenário é o ambiente
perfeito para nutrir atitudes monstruosas como a de Antonio Fernandes de
Oliveira, de 29 anos de idade. Conhecido com Pai Bola, ele age em Alcaçuz sob o
efeito do crack. Em novembro de 2009, Pai Bola foi capaz de desferir 120 golpes
de faca artesanal numa vítima que lhe negou o celular .
Seis meses antes, matara outro interno por asfixia, usando um lençol. Dois anos
depois, cometeu um crime ainda mais bárbaro. Decapitou um colega de cela, comeu
literalmente seu fígado e depois espalhou suas vísceras pelas paredes. Mesmo
diante de repetida atrocidade, a direção do presídio permitiu que em 2012 um
rapaz se oferecesse para ler a Bíblia para Pai Bola. Durante a noite, o
religioso foi morto com uma facada no pescoço enquanto dormia. “Me deu
vontade”, respondeu Pai Bola quando questionado sobre o motivo que o levara a
matar o religioso.
Nem a visita de Barbosa
trouxe uma solução rápida para o preso sanguinário. Somente na semana passada,
a Justiça mandou uma correspondência ao presídio em busca de algum atestado
sobre a saúde mental do assassino. O Ministério Público Estadual pediu que seja
declarada a insanidade dele. As funcionárias do Fórum de Nísia Floresta,
município onde se localiza Alcaçuz, desviam os olhos e viram o rosto ao folhear
os processos de homicídios cometidos por Pai Bola. O juiz Henrique Baltazar
Vilar dos Santos, responsável pelo presídio, é mais frio e explica a violência
na penitenciária. Ele conta que as facas usadas para matar são feitas com
pedaços de ferro extraídos das próprias celas. Não são compridas o suficiente
para atingir um órgão vital nem muito afiadas. Por isso, são necessários vários
golpes para matar. O assassino geralmente começa o ataque pelo pescoço para
deixar a vítima sem reação. Logo após a inspeção feita por Joaquim Barbosa, o
CNJ elaborou um relatório que enumera 20 assassinatos de presos dentro de
Alcaçuz desde 2007.
A afirmação de que o Rio
Grande do Norte pode ser o novo Maranhão encontra base na comparação entre a
situação carcerária nos dois Estados. Ambos também têm em comum governos poucos
eficientes na aplicação de verbas no sistema penitenciário. Conforme dados da
Justiça do Rio Grande do Norte, a governadora Rosalba Ciarlini (DEM) prometeu
investir R$ 6 milhões em 2013 na reforma de estabelecimentos penais para abrir
mais 500 vagas, mas aplicou apenas R$ 2 milhões. Roseana Sarney precisou
devolver R$ 22 milhões ao Ministério da Justiça porque deixou de apresentar
projetos que atendiam às exigências técnicas para a construção de presídios. Na
tarde da quinta-feira passada, a diretora do presídio de Alcaçuz, Dinora Sima
Lima Deodato, apontou o dedo para um saco de cimento e alguns tijolos comprados
para reformas no presídio e que estavam no pátio de entrada da penitenciária –
onde 800 internos vivem num lugar onde caberiam, no máximo, 600. Essa é a
providência mais visível da administração da governadora Rosalba Ciarlini
contra o caos nos estabelecimentos penais e em resposta ao alerta do CNJ.
A diretora Dinora se
dispôs a mostrar a ÉPOCA que nada ou pouquíssima coisa mudou desde a visita de
Joaquim Barbosa à penitenciária. Mal a diretora tinha acabado de se levantar da
cadeira de seu escritório para ir ao pavilhão, ela recebeu por telefone uma
contraordem da Secretaria Estadual de Justiça. “Não autorizaram sua entrada”,
disse Dinora. A decisão vinda de cima é política, e nada tem a ver com medidas
de segurança, pois a própria diretora se prontificara a abrir os portões para a
visita da reportagem de ÉPOCA.
As artimanhas dos
governantes para maquiar números também influenciam o caos penitenciário. O
atual governo potiguar diz que a governadora Wilma de Faria (PSB), que comandou
o Estado entre 2003 e 2010, criou uma espécie de “presídio no papel”. Sem
nenhuma reforma, Wilma simplesmente transformou, numa canetada, delegacias da
Polícia Civil em centros de detenção. Atualmente, cerca de 1.430 presos, o que
corresponde a 20% da população carcerária, cumprem penas nesses locais, muitas
vezes sem banho de sol nem segurança contra fugas.
Vários outros Estados do
Nordeste enfrentam situações extremas. Entre eles, Pernambuco, onde houve 98
assassinatos nos presídios entre 2011 e julho de 2013. Lá, o número de presos
quase dobrou, chegando a 29 mil. O Rio Grande do Norte vem logo em seguida, com
89% de aumento. É provável que as prisões em massa tenham sido reflexo da
explosão de violência na década passada, quando a alta criminalidade migrou do
Sudeste para o Nordeste. São Paulo e Rio de Janeiro reduziram consideravelmente
os homicídios, ao mesmo tempo que no Nordeste as mortes violentas quase
duplicaram – Maranhão e Bahia multiplicaram por quatro seus índices. Assim,
Alagoas, Piauí, Maranhão, Ceará, Bahia e Rio Grande do Norte entraram na lista
dos dez Estados mais críticos do país. Para o Instituto de Pesquisa Econômica
Aplicada (Ipea), a elevação de renda atraiu o tráfico de drogas, trazendo a
violência em seu rastro.
Os 88.445 presos do
Nordeste registrados pelo Departamento Penitenciário Nacional (Depen)
representam 15% do total de encarcerados do país, 548 mil. Embora a gestão dos
sistemas penitenciários caiba aos Estados da federação, é atribuição da União
formular políticas criminais e penitenciárias e fomentar a melhoria das
condições gerais. O Depen é o responsável ainda por distribuir aos Estados o
Fundo Penitenciário Nacional (Funpen). A questão é a importância política que o
governo federal está disposto a dar à área, que só tem destaque quando ocorrem
tragédias como a de Pedrinhas, no Maranhão, onde presos foram decapitados. Em
2013, o Executivo federal só gastou 19% dos R$ 384 milhões do Funpen, ou R$
73,6 milhões. Os recursos foram contingenciados para fazer o superavit
primário. O Nordeste é a região onde Dilma Rousseff, proporcionalmente, teve
mais votos nas últimas eleições. Mesmo que a segurança pública seja da alçada
estadual, o governo federal também é responsável pelo atual descalabro.
Fonte:
Hudson Correa e Raphael Gomide - Revista Época - 18/01/2014