sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

Espaço virtual, denúncia real


A página foi criada após trote em São Paulo: basta de humilhações.

Seis alunas da Universidade de Brasília criam em uma rede social a página Fiu Fiu UnB e recebem vários relatos de abusos e grosserias. As estudantes de ciência política da UnB reuniram 3,3 mil seguidores da iniciativa em uma semana...

Seis alunas de ciência política da Universidade de Brasília (UnB) se cansaram das agressões e das cantadas grosseiras nos corredores da instituição e se uniram para denunciar os abusos. A página Fiu Fiu – UnB, criada no último dia 12 em uma rede social, tem a proposta de publicar relatos anônimos, a princípio sobre
fatos acontecidos no câmpus. 

Em alguns dias, o tema se expandiu para traumas de infância e de adolescência, além das denúncias de outras brasilienses (leia Dor e revolta). “A ideia da página é, inicialmente, ser um espaço de desabafo. Quem não tem como confiar nos pais ou nos amigos, encontra nela um espaço para ser anônimo, com segurança”, comenta Luíza Lucchesi, de 19 anos, uma das responsáveis pela iniciativa. Em uma semana, conseguiram mais de 3,3 mil seguidores.

Mesmo que não seja uma denúncia oficial, a Fiu Fiu serve para acolhimento e aconselhamento. Em diversos relatos, as mulheres afirmam se sentirem culpadas pelo que sofreram, como se elas tivessem provocado as agressões. Nos comentários, encontram palavras de apoio. “Acho muito importante ter esse espaço em que as experiências negativas, de muita dor e sofrimento, sejam tornadas públicas. Não é para transformar em espetáculo, mas socializar o sentimento com outras tantas pessoas que sofreram de maneira semelhante”, opina a professora Lourdes Maria Bandeira, do Departamento de Sociologia da UnB.

Outra característica marcante dos depoimentos é que boa parte das vítimas descreve como se vestia no momento do abuso: contam que estavam usando shorts curtos, minissaias, decotes, como se fossem esses os motivos da agressão. E, depois dos episódios, contam que pensam duas vezes no que usar antes de sair de casa. O medo de não poder estar à vontade atinge até mesmo as seis criadoras da Fiu Fiu. “Venho para a universidade de calça comprida e visto um short quando chego aqui. Na volta, coloco de novo a calça para entrar no ônibus”, relata Amanda Oliveira, de 19 anos.

A ideia da página surgiu quando Beatriz viu a notícia de um trote vexatório em São Paulo, em que calouras teriam que simular sexo oral com bananas. As aulas na UnB começam no próximo dia 10 e um grande objetivo das criadoras da página é tornar o movimento forte ao ponto de coibir trotes violentos e conscientizar os veteranos. “As pessoas não têm o incentivo de romper com a cultura do trote depreciativo da mulher: elas só passam isso para a frente”, comenta Amanda. O grupo acredita que falta à universidade uma postura mais firme em relação à coerção desse tipo de violência contra os calouros. 

A assessoria de Comunicação da UnB informou que não existem diretrizes específicas, mas há um código de conduta que deve ser respeitado por todos. No Guia do Calouro, aparecem detalhadas as regras de convivência na instituição. Nele, a UnB alerta que “quer deixar para trás atos que agridem, sujem, humilhem e estabelecem relações de poder e de autoridade entre iguais. A ideia é eliminar todas as formas de preconceito e assegurar o respeito à diversidade e à proteção ao patrimônio público, além de preservar valores éticos de liberdade, igualdade, fraternidade e democracia. Tudo isso para que estudantes, professores e servidores vivam a universidade com respeito.”

Além disso, prega-se a proibição do trote “ou qualquer outra forma de violência que submeta o calouro ou outro membro da comunidade acadêmica a ações que lhe atinjam a integridade física ou psíquica”.

Dor e revolta
Confira alguns relatos anônimos publicados na página na última semana:

Sempre fui um pouco mais alta do que a média e com o tempo (não sei se foi pela altura) desenvolvi um belo corpo. Não vou me gabar disso, mas também não vou me envergonhar! Sou muito tímida e, no primeiro dia de aula, ouvi certos comentários. Depois, na fila do Restaurante Universitário, havia um grupo de garotos avaliando as garotas que passavam na fila. Depois, eu passava entre a agronomia e o Instituto de Geociências e aqueles comentários vinham. Passei a evitar certos caminhos, deixei de usar shorts e roupas mais confortáveis. A minha mãe falou que eu nunca deveria usar shorts ou saia na rua mesmo, pois isso estimulava uma ação mais grosseira. Será que a culpa é realmente minha? Será que, se algo acontecesse comigo, primeiro olhariam a minha roupa?”

Eu morava na 402 Sul e uma amiga na 203 Sul, uma bem pertinho da outra. Era carnaval, cerca de 14h, e o Galinho já estava no aquecimento. Eu tinha 15 anos, estava andando com a minha amiga até a casa dela para nos arrumarmos para a festa. Enquanto estávamos andando, distraídas, um rapaz apertou a minha bunda com as duas mãos e com toda a força que ele tinha. Como eu estava usando um short de tecido bem fininho, eu fiquei marcada. Machucada e assustada. Ele estava bêbado, eram duas meninas novas sozinhas, carnaval... Era o meu corpo, o meu direito, a minha privacidade. Fim de festa. Não tive coragem de voltar para o carnaval.”

Há um ou dois anos, eu estava saindo da UnB, passando pelo Centro de Excelência em Turismo, sozinha. Vi dois homens indo em direção à Faculdade de Saúde. Eles pararam, olharam para mim, apontaram e mudaram de direção. Começaram a caminhar olhando para mim. Eu abaixei a cabeça, prendi a respiração e continuei andando. Não só com medo deles, mas medo de ser injusta ou grosseira. Eu levantei a cabeça, afinal, são só pessoas, não é mesmo? Eu dei bom dia, eles lamberam os lábios olharam pra mim como se eu fosse carne e um disse pro outro: ‘A gente devia pegar essa aí’. Mas eles simplesmente passaram por mim. Eu dei 10 passos e caí em um choro compulsivo.”


Fonte: Correio Braziliense