quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

Brutalidade sem punição

Yan carrega as marcas no corpo e na alma das agressões sofridas no Eixão Sul no último domingo, que revoltam a família do jovem...

Autores de quatro casos de espancamento de grande repercussão no Distrito Federal não chegaram a ficar presos. No último fim de semana, mais três jovens foram agredidos. A selvageria contra um deles foi filmada e as imagens circulam nas redes sociais.

O histórico recente de vítimas de espancamento no Distrito Federal indica que os agressores do estudante Yan Filipe Lopes Xavier, 18 anos, poderão ficar impunes. Confundido com um ladrão de carros, o jovem teve o rosto desfigurado por socos e chutes desferidos por homens descontrolados. A brutalidade ocorreu no fim da tarde do último domingo, no Eixão Sul, na altura da 105. Até agora, ninguém foi preso. O Correio resgatou quatro
casos de pessoas surradas covardemente por grupos nos últimos sete anos e, em nenhum deles, os autores foram para a cadeia.

Em 2007, Gabriel Pereira de Souza, então com 15 anos, foi confundido com um rival de cinco recrutas do Exército. O rapaz e a namorada saíam do Shopping Pier 21, no Lago Sul, e esperavam por uma carona no estacionamento. Os militares se aproximaram e começaram a golpeá-lo.

O rapaz teve o maxilar quebrado, além de ter sido submetido à restauração de vários dentes. Ficou sete dias internado e, por não poder mastigar, perdeu 10 quilos. Mesmo identificados, nenhum dos cinco recrutas foi preso. “O laudo do IML (Instituto de Medicina Legal) constatou que eu levei diversas pancadas na cabeça. Bateram para matar e, mesmo assim, nem passaram perto da prisão. Mudei drasticamente minha rotina, peguei trauma da noite e ainda sinto dores no maxilar quando faz muito frio ou calor. No fim das contas, só eu fui punido”, disse.

Os agressores de Gabriel foram indiciados apenas pelo crime de lesão corporal (cuja pena prevista é de cinco a 15 anos), mas o inquérito acabou arquivado a pedido da própria vítima. “Fiquei tão revoltado com o fato de eles não serem indiciados por tentativa de homicídio (cuja pena é de até 20 anos) que preferi não me estressar. Só ia me expor e eles nunca iriam, de fato, para a cadeia”, conta.

Quem também ainda sofre com as sequelas de um espancamento é o estudante Caio Rodrigo Lessa, 18 anos. Em 1º de julho de 2010, o adolescente apanhou de nove jovens na porta do Centro Educacional Caseb, na 909 Sul. Submetido a duas cirurgias para drenar um coágulo no cérebro, o adolescente não pode mais fazer atividades como correr ou jogar futebol. “Eu fico tonto e cansado. Também não enxergo direito com o olho esquerdo, onde eles bateram muito”, relatou Caio.

Dos nove agressores, apenas três foram identificados. Passaram dois dias internados no antigo Centro de Atendimento Juvenil Especializado (Caje) e foram liberados. Outro episódio de violência que permanece impune é o do estudante do colégio Marista Leonardo Guimarães Moreira, hoje com19 anos. Em outubro de 2012, pelo menos quatro jovens praticantes de artes marciais o espancaram no Centro de Atividades (CA) do Lago Norte. O aluno de engenharia da Universidade de Brasília (UnB) Fabrício Nunes Macedo, 19, admitiu participação no linchamento. 

A Justiça determinou que o universitário não frequentasse locais com grande aglomeração. Fabrício não recebeu nenhuma outra sanção. Indiciado por lesão corporal, aguarda uma decisão da Justiça para saber qual será a sua punição, mas tem a certeza de que, pela natureza do delito, no máximo pagará uma pena alternativa. “Nas audiências, ele debochava da situação”, contou a irmã de Leonardo, Lauseane Santoni, 31 anos.

Outro crime sem castigo é o que quase tirou a vida do nutricionista Bruno Marcelino, 26 anos. Em agosto de 2011, seguranças do Bar Calaf, no Setor Bancário Sul, retiraram o rapaz a pontapé do estabelecimento. Nenhum deles foi punido até hoje, apesar dos agravantes de se tratar de uma agressão em grupo, que, em tese, poderia aumentar a pena dos suspeitos.

Trauma
No domingo, mais três jovens foram vítimas de espancamento no DF. Um deles, o lavador de carros Wendrey Ribeiro, 19 anos, morreu em Sobradinho 2 após levar golpes de barras de ferro. Dois homens são suspeitos da barbárie. No Eixão Sul, Yan Filipe e um amigo levaram chutes e pontapés de um grupo de pelo menos 20 pessoas durante uma apresentação de um bloco carnavalesco. 

O sentimento que prevalece entre Yan, o amigo e os familiares das vítimas é de insegurança. “Agora temos que tomar cuidado com os lugares que frequentamos, com quem estamos e até com as pessoas que estão no local. A gente não estava fazendo nada de errado e, mesmo assim, aconteceu tudo isso”, desabafou Yan Filipe, morador de Sobradinho (leia Depoimento). A agressão contra ele foi filmada, e as imagens acabaram divulgadas em uma rede social.

Depoimento

“Não tinha motivo”
“Saí cedo de casa para fazer o vestibular. Minha mãe me deixou na porta da universidade. Quando terminei a prova, pedi permissão aos meus pais para encontrar uns amigos em um bloco de carnaval no Eixão Sul. Segui para a festa. Lá, estava com mais um amigo e três amigas. Nós estávamos ouvindo música, dançando e conversando. Eu e meu amigo saímos outras vezes para dar uma volta pela festa, mas nada aconteceu até então. Na última vez que nos afastamos do grupo, fomos urinar atrás de uma árvore. Meu amigo estava próximo a um carro e, de repente, viu dois caras que chegaram por trás de mim e me surpreenderam com um soco na nuca. Uma covardia. Os caras pareciam procurar briga, não tinha motivo. Depois disso, só tenho flashes do hospital. Quando acordei, estava em casa e não sabia direito o que tinha acontecido. Eu não consigo nem ter raiva deles (agressores), pois não me lembro de nada.”

Yan Filipe Lopes Xavier, 18 anos, vítima de espancamento
Palavra de especialista
“Os frequentes episódios de crime e violência interpessoal parecem incluir agora um outro modus operandi — o chamado vigilantismo. Ele se traduz por ocorrências em que acontece o ‘fazer justiça com as próprias mãos’, passando por imobilizações de delinquentes em postes e vias públicas, muitas vezes em seguida a espancamentos, algo que,  levado ao extremo, pode incluir até mesmo mortes por linchamentos. Há quem veja nisso a materialização de uma espécie de pânico coletivo. Some-se a uma visão de grande quantidade de crime e violência a percepção de vitimização aleatória (ninguém está a salvo, em nenhuma hora e em lugar nenhum...), e passa a ficar estabelecida uma sensação de insegurança retroalimentada a cada novo episódio ‘espetacular’, como no caso recente dos jovens que foram agredidos na 105 Sul. Ao que parece, a atual situação está clamando por novas políticas públicas, planos e programas capazes de superar e suprir antigas demandas insatisfeitas e reprimidas desde longo tempo.”

George Felipe de Lima Dantas, professor doutor e consultor em segurança pública

 PM interrompe linchamento
O centro de capital foi palco de mais um caso de espancamento. Desta vez, a vítima é um suspeito de furtar objetos dentro de um carro. Ele foi agredido ontem no Setor de Diversões Norte. De acordo com a Polícia Militar, o homem acabou surpreendido quando tentava arrombar um veículo. Neste momento, o dono do automóvel começou a gritar “Ladrão! Ladrão!”. Pessoas que passavam próximas ajudaram a cercar o suspeito e começaram a espancá-lo. A sessão de linchamento só terminou com a chegada da Polícia Militar. Agentes evitam o pior

Agentes evitam o pior 
As consequências do espancamento de Yan Filipe poderiam ter sido mais trágicas não fosse a interferência de agentes de trânsito do Departamento de Estradas de Rodagem (DER). Uma equipe do órgão passava pelo Eixão Sul quando percebeu o tumulto. Ao se aproximarem, os servidores viram cerca de 20 jovens sem camisa, fortes e usando tênis e bermudas de marcas, dando chutes em Yan. Um dos agentes de plantão naquele domingo era Francisco Filho Chagas. Ele e os colegas, Arerli Pereira e Rafael da Silva Fernandes, mesmo não estando armados, impediram a sequência de agressões.

Chagas diz nunca ter visto tamanha crueldade. “Foi a coisa mais bárbara que presenciei na vida. Não sabíamos se era um bandido ou um cidadão de bem, mas aquilo não podia continuar”, afirmou. Chagas e o outro colega chegaram a pensar que também seriam vítimas da brutalidade. Os suspeitos danificaram a lataria da viatura atirando garrafas de cerveja. “Era um grupo extremamente agressivo. Acho que eles só não nos agrediram porque começaram a brigar entre si. Logo depois, a polícia chegou, e eles dispersaram”, contou.O pai de Yan, o policial civil Antonio Sérgio Xavier, 46 anos, agradeceu aos agentes do DER. “Se não fosse a atitude deles, não sei o que teria acontecido com meu filho”, disse.


Fonte: Correio Braziliense - 19/02/2014