Yan carrega as marcas no corpo e na alma das
agressões sofridas no Eixão Sul no último domingo, que revoltam a família do
jovem...
Autores de quatro casos de espancamento de grande
repercussão no Distrito Federal não chegaram a ficar presos. No último fim de
semana, mais três jovens foram agredidos. A selvageria contra um deles foi
filmada e as imagens circulam nas redes sociais.
O histórico recente de vítimas de espancamento no
Distrito Federal indica que os agressores do estudante Yan Filipe Lopes Xavier,
18 anos, poderão ficar impunes. Confundido com um ladrão de carros, o jovem
teve o rosto desfigurado por socos e chutes desferidos por homens
descontrolados. A brutalidade ocorreu no fim da tarde do último domingo, no
Eixão Sul, na altura da 105. Até agora, ninguém foi preso. O Correio resgatou
quatro
casos de pessoas surradas covardemente por grupos nos últimos sete anos
e, em nenhum deles, os autores foram para a cadeia.
Em 2007, Gabriel Pereira de Souza, então com 15 anos,
foi confundido com um rival de cinco recrutas do Exército. O rapaz e a namorada
saíam do Shopping Pier 21, no Lago Sul, e esperavam por uma carona no estacionamento.
Os militares se aproximaram e começaram a golpeá-lo.
O rapaz teve o maxilar quebrado, além de ter sido
submetido à restauração de vários dentes. Ficou sete dias internado e, por não
poder mastigar, perdeu 10 quilos. Mesmo identificados, nenhum dos cinco
recrutas foi preso. “O laudo do IML (Instituto de Medicina Legal) constatou que
eu levei diversas pancadas na cabeça. Bateram para matar e, mesmo assim, nem
passaram perto da prisão. Mudei drasticamente minha rotina, peguei trauma da
noite e ainda sinto dores no maxilar quando faz muito frio ou calor. No fim das
contas, só eu fui punido”, disse.
Os agressores de Gabriel foram indiciados apenas pelo
crime de lesão corporal (cuja pena prevista é de cinco a 15 anos), mas o
inquérito acabou arquivado a pedido da própria vítima. “Fiquei tão revoltado
com o fato de eles não serem indiciados por tentativa de homicídio (cuja pena é
de até 20 anos) que preferi não me estressar. Só ia me expor e eles nunca
iriam, de fato, para a cadeia”, conta.
Quem também ainda sofre com as sequelas de um
espancamento é o estudante Caio Rodrigo Lessa, 18 anos. Em 1º de julho de 2010,
o adolescente apanhou de nove jovens na porta do Centro Educacional Caseb, na
909 Sul. Submetido a duas cirurgias para drenar um coágulo no cérebro, o
adolescente não pode mais fazer atividades como correr ou jogar futebol. “Eu
fico tonto e cansado. Também não enxergo direito com o olho esquerdo, onde eles
bateram muito”, relatou Caio.
Dos nove agressores, apenas três foram identificados.
Passaram dois dias internados no antigo Centro de Atendimento Juvenil
Especializado (Caje) e foram liberados. Outro episódio de violência que
permanece impune é o do estudante do colégio Marista Leonardo Guimarães
Moreira, hoje com19 anos. Em outubro de 2012, pelo menos quatro jovens
praticantes de artes marciais o espancaram no Centro de Atividades (CA) do Lago
Norte. O aluno de engenharia da Universidade de Brasília (UnB) Fabrício Nunes
Macedo, 19, admitiu participação no linchamento.
A Justiça determinou que o universitário não
frequentasse locais com grande aglomeração. Fabrício não recebeu nenhuma outra
sanção. Indiciado por lesão corporal, aguarda uma decisão da Justiça para saber
qual será a sua punição, mas tem a certeza de que, pela natureza do delito, no
máximo pagará uma pena alternativa. “Nas audiências, ele debochava da
situação”, contou a irmã de Leonardo, Lauseane Santoni, 31 anos.
Outro crime sem castigo é o que quase tirou a vida do
nutricionista Bruno Marcelino, 26 anos. Em agosto de 2011, seguranças do Bar
Calaf, no Setor Bancário Sul, retiraram o rapaz a pontapé do estabelecimento.
Nenhum deles foi punido até hoje, apesar dos agravantes de se tratar de uma
agressão em grupo, que, em tese, poderia aumentar a pena dos suspeitos.
Trauma
No domingo, mais três jovens foram vítimas de
espancamento no DF. Um deles, o lavador de carros Wendrey Ribeiro, 19 anos,
morreu em Sobradinho 2 após levar golpes de barras de ferro. Dois homens são
suspeitos da barbárie. No Eixão Sul, Yan Filipe e um amigo levaram chutes e
pontapés de um grupo de pelo menos 20 pessoas durante uma apresentação de um
bloco carnavalesco.
O sentimento que prevalece entre Yan, o amigo e os
familiares das vítimas é de insegurança. “Agora temos que tomar cuidado com os
lugares que frequentamos, com quem estamos e até com as pessoas que estão no
local. A gente não estava fazendo nada de errado e, mesmo assim, aconteceu tudo
isso”, desabafou Yan Filipe, morador de Sobradinho (leia Depoimento). A
agressão contra ele foi filmada, e as imagens acabaram divulgadas em uma rede
social.
Depoimento
“Não tinha motivo”
“Saí cedo de casa para fazer o vestibular. Minha mãe
me deixou na porta da universidade. Quando terminei a prova, pedi permissão aos
meus pais para encontrar uns amigos em um bloco de carnaval no Eixão Sul. Segui
para a festa. Lá, estava com mais um amigo e três amigas. Nós estávamos ouvindo
música, dançando e conversando. Eu e meu amigo saímos outras vezes para dar uma
volta pela festa, mas nada aconteceu até então. Na última vez que nos afastamos
do grupo, fomos urinar atrás de uma árvore. Meu amigo estava próximo a um carro
e, de repente, viu dois caras que chegaram por trás de mim e me surpreenderam
com um soco na nuca. Uma covardia. Os caras pareciam procurar briga, não tinha
motivo. Depois disso, só tenho flashes do hospital. Quando acordei, estava em
casa e não sabia direito o que tinha acontecido. Eu não consigo nem ter raiva
deles (agressores), pois não me lembro de nada.”
Yan Filipe Lopes Xavier, 18 anos, vítima de
espancamento
Palavra de especialista
“Os frequentes episódios de crime e violência
interpessoal parecem incluir agora um outro modus operandi — o chamado
vigilantismo. Ele se traduz por ocorrências em que acontece o ‘fazer justiça
com as próprias mãos’, passando por imobilizações de delinquentes em postes e
vias públicas, muitas vezes em seguida a espancamentos, algo que, levado
ao extremo, pode incluir até mesmo mortes por linchamentos. Há quem veja nisso
a materialização de uma espécie de pânico coletivo. Some-se a uma visão de
grande quantidade de crime e violência a percepção de vitimização aleatória
(ninguém está a salvo, em nenhuma hora e em lugar nenhum...), e passa a ficar
estabelecida uma sensação de insegurança retroalimentada a cada novo episódio
‘espetacular’, como no caso recente dos jovens que foram agredidos na 105 Sul.
Ao que parece, a atual situação está clamando por novas políticas públicas,
planos e programas capazes de superar e suprir antigas demandas insatisfeitas e
reprimidas desde longo tempo.”
George Felipe de Lima Dantas, professor doutor e
consultor em segurança pública
PM interrompe linchamento
O centro de capital foi palco de mais um caso de
espancamento. Desta vez, a vítima é um suspeito de furtar objetos dentro de um
carro. Ele foi agredido ontem no Setor de Diversões Norte. De acordo com a
Polícia Militar, o homem acabou surpreendido quando tentava arrombar um
veículo. Neste momento, o dono do automóvel começou a gritar “Ladrão! Ladrão!”.
Pessoas que passavam próximas ajudaram a cercar o suspeito e começaram a
espancá-lo. A sessão de linchamento só terminou com a chegada da Polícia
Militar. Agentes evitam o pior
Agentes evitam o pior
As consequências do espancamento de Yan Filipe
poderiam ter sido mais trágicas não fosse a interferência de agentes de trânsito
do Departamento de Estradas de Rodagem (DER). Uma equipe do órgão passava pelo
Eixão Sul quando percebeu o tumulto. Ao se aproximarem, os servidores viram
cerca de 20 jovens sem camisa, fortes e usando tênis e bermudas de marcas,
dando chutes em Yan. Um dos agentes de plantão naquele domingo era Francisco
Filho Chagas. Ele e os colegas, Arerli Pereira e Rafael da Silva Fernandes,
mesmo não estando armados, impediram a sequência de agressões.
Chagas diz nunca ter visto tamanha crueldade. “Foi a
coisa mais bárbara que presenciei na vida. Não sabíamos se era um bandido ou um
cidadão de bem, mas aquilo não podia continuar”, afirmou. Chagas e o outro
colega chegaram a pensar que também seriam vítimas da brutalidade. Os suspeitos
danificaram a lataria da viatura atirando garrafas de cerveja. “Era um grupo
extremamente agressivo. Acho que eles só não nos agrediram porque começaram a
brigar entre si. Logo depois, a polícia chegou, e eles dispersaram”, contou.O
pai de Yan, o policial civil Antonio Sérgio Xavier, 46 anos, agradeceu aos
agentes do DER. “Se não fosse a atitude deles, não sei o que teria acontecido
com meu filho”, disse.
Fonte: Correio Braziliense -
19/02/2014