quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

Indenização não diminui a dor

Contador processa funcionária de banco e recebe R$ 6 mil por ter sido discriminado durante o atendimento no caixa. Apesar da reparação em dinheiro, vítima de 23 anos defende a prisão dos acusados de crimes de racismo e de injúria racial...

"Todo e qualquer crime de racismo deveria ser inafiançável" Kim Fortunato, 23 anos, contador.

A sensação de impunidade vivida em crimes de racismo no Brasil, muitas vezes, permanece depois de a Justiça punir o culpado. Há dois meses, o contador Kim Fortunato, 23 anos, recebeu uma indenização de R$ 6 mil por ter sido discriminado pela funcionária de um banco no Plano Piloto. “Eu ganhei o dinheiro, mas a indignação de ver
uma racista solta depois de julgar o meu caráter pela cor da minha pele não passa nunca”, afirma.


O episódio aconteceu há quatro meses. Ele foi a uma agência bancária acompanhado de um colega de cor branca a fim de depositar cerca de R$ 50 mil. O dinheiro era proveniente de um bazar que a ONG onde trabalha havia feito para arrecadar fundos. Ao chegar ao caixa, a servidora perguntou sobre o valor do depósito. Como o contador não sabia com exatidão, ela ficou desconfiada. “A funcionária queria saber a origem do dinheiro e como eu não sabia a quantia exata. Fez vários questionamentos. Chegou a perguntar se eu era retardado”, recorda.


O mais revoltante, segundo Kim, aconteceu quando a atendente pediu para falar com o colega — ela acreditava que ele seria o “patrão” do contador. “Só porque ele era branco, ela achou que era o meu chefe. Ele não podia ser meu subordinado ou algo assim também? Tirou essa conclusão pela cor da minha pele”, avalia. Apesar da revolta, o contador chamou o amigo. “Ele disse que não tinha nada de errado com aquele dinheiro, e ela confiou na mesma hora, sem nem fazer uma pergunta sequer”, indigna-se.


No dia seguinte, Kim voltou ao banco e pediu para conversar com o gerente, que passou o nome e a matrícula da funcionária. “Busquei a Justiça, e ela pagou minimamente pelo que fez”, diz. No tribunal, a mulher chorou e tentou desmentir o episódio. “Depois do que fez, é fácil se arrepender.” Segundo o contador, a mulher foi enquadrada no crime de injúria racial. E critica a atual legislação. “A discriminação está na piada, em expressões como ‘lista negra’ e ‘inveja branca’. Por que a lista negra é ruim e a inveja branca é boa? Todo e qualquer crime de racismo deveria ser inafiançável”, opina.


Para o advogado criminal Bruno Espiñeira, 42 anos, no entanto, cada delito tem um grau de gravidade, e os casos de injúria dão direito ao acusado de responder ao processo em liberdade. “Queiramos ou não, essa distinção existe. Xingar a coletividade e toda uma etnia é muito mais grave do que ferir a honra de uma só pessoa. Ofender de preta safada é o mesmo que chamar alguém de nordestino preguiçoso. É inadmissível, mas não cabe a reclusão total”, analisa.


Opressão
Mesmo tendo a população majoritariamente negra, episódios como o de Kim são recorrentes na capital federal. O levantamento mais recente da Pesquisa Distrital por Amostra de Domicílios (Pdad), feita pela Companhia de Planejamento do Distrito Federal (Codeplan), revela que 54% dos moradores do quadrilátero são negros. 


Além disso, a desigualdade se reflete nos indicadores socioeconômicos, segundo o presidente da Codeplan, Júlio Miragaya . “O que prevalece não é a situação de maioria ou de minoria. Existe uma opressão pelo poder econômico concentrado na população branca. E isso se materializa nos atos de preconceito. Vivemos uma situação de ilusão, de hipotética democracia racial, que, na verdade, não existe”, explica.


Cobradora faz denúncia
Um dia após procurar a Polícia Civil para denunciar a passageira que a xingou de “preta safada” e “negra ordinária”, a cobradora Claudinei Gomes, 33 anos, conseguiu registrar a ocorrência. Na noite da última segunda-feira, ela relatou ao Correio ter sido desencorajada a oficializar a denúncia por um agente da 33ª Delegacia de Polícia (Santa Maria). “Se nem a polícia quer, quem sou eu para ir atrás dessa mulher? Nunca vou achá-la sozinha”, desabafou.

A Divisão de Comunicação da Polícia Civil do DF (Divicom) informou que o caso “foi registrado ontem (hoje) na 33ª DP e já foi encaminhado ao local de apuração (17ª DP, em Taguatinga).” Ainda segundo a assessoria da corporação, a vítima foi “categórica ao informar, inclusive em termo de declaração, que em momento algum foi desencorajada e que foi bem atendida na delegacia”.


A agressão a Claudinei aconteceu na última sexta-feira, mesmo dia em que a manicure Tássia dos Anjos, 22 anos, foi vítima de racismo em um salão de beleza, na 115/116 Sul. Ela pintaria as unhas da australiana Louise Stephanes Garcia Gaunth, que teria exigido outra profissional e ainda a chamou de “raça ruim”. A acusada foi presa e libertada por meio de um habeas corpus no dia seguinte. (AB)


Opinião 
O conceito de brasileiro cordial cai por terra ante a violência que se alastra de norte a sul do país. Não se fala aqui apenas de atos imoderados como os praticados pelos black blocs. Ou de ação de justiceiros que algemam pessoas a poste. Ou de bandidos que ateiam fogo em ônibus e em seres humanos. Ou de sequestros relâmpagos que assustam cidadãos e lhes limitam o direito de ir e vir. Ou de homicídios que ultrapassam cifras registradas em países em guerra. 


Fala-se do crime de racismo. Discriminar adultos e crianças com base na cor da pele é, além de caduco, inaceitável. Baseia-se no prejulgamento de que há seres superiores e inferiores não em decorrência de obras por eles realizadas, mas de característica física biologicamente herdada. Os preconceituosos se esquecem de que a escravidão acabou em 1888 e teimam em manter comportamento de casa grande e senzala. 


Brasília, cidade que abriga brasileiros das 27 unidades da Federação, exibe números que envergonham a maior parte da população. O Disque-Denúncia, serviço do Governo do Distrito Federal, recebeu, em menos de um ano de criação, quase 8 mil ligações. Delas, 126 mereceram o carimbo de racismo — média de 11 casos mensais. Em 2012, a Secretaria de Segurança Pública somou 407 ocorrências do gênero.


É constrangedor tomar conhecimento de dois fatos ocorridos na semana passada. Um deles: cliente de salão de beleza recusou o atendimento de manicure negra, classificada de “raça ruim”. A cena, filmada por clientes e pelo circuito interno de tevê do estabelecimento, levou à prisão da mulher. Apesar de o crime de racismo ser inafiançável, ela ganhou a liberdade depois de menos de 24 horas de detenção.


O outro: cobradora da Viação Planeta enfrentou agressão covarde e constrangedora. Durante o trajeto, pane no ônibus impediu que a porta se abrisse. Contrariada, passageira investiu contra a trabalhadora chamando-a de “negra ordinária e preta safada”. Depois, desceu calmamente e caminhou sem pressa, certa da impunidade.


São dois exemplos do vasto prontuário do GDF. Em nível nacional, o quadro não é melhor. Aliadas à agressão verbal, ocorrem outras. Fiscalização do Ministério do Trabalho tem identificado casos de trabalhadores rurais em situação de escravidão. No Entorno, é elevado o número de assassínio de jovens negros entre 15 e 19 anos. Todos têm a marca do racismo, da intolerância e da desatualização. Nada mais extemporâneo do que agir no século 21 como se estivesse no Brasil escravocrata. 


Além da punição prevista em lei, impõem-se ações aptas a evitar que cenas como as da semana passada se repitam. Entre elas, campanhas governamentais destinadas à mudança de mentalidade da população. Escolas, igrejas, clubes sociais, meios de comunicação de massa devem colaborar para deixar a vergonha para trás. O brasileiro pode tornar-se cordial de fato. Ser movido pelo coração pressupõe valores cristãos e democráticos. Conviver com as diferenças é fruto da civilização.



Fonte: Correio Braziliense - 19/02/2014