Contador processa funcionária de banco e recebe R$ 6
mil por ter sido discriminado durante o atendimento no caixa. Apesar da
reparação em dinheiro, vítima de 23 anos defende a prisão dos acusados de
crimes de racismo e de injúria racial...
"Todo e qualquer crime de racismo deveria ser
inafiançável" Kim Fortunato, 23 anos, contador.
A sensação de impunidade vivida em crimes de racismo
no Brasil, muitas vezes, permanece depois de a Justiça punir o culpado. Há dois
meses, o contador Kim Fortunato, 23 anos, recebeu uma indenização de R$ 6 mil
por ter sido discriminado pela funcionária de um banco no Plano Piloto. “Eu
ganhei o dinheiro, mas a indignação de ver
uma racista solta depois de julgar o
meu caráter pela cor da minha pele não passa nunca”, afirma.
O episódio aconteceu há quatro meses. Ele foi a uma
agência bancária acompanhado de um colega de cor branca a fim de depositar
cerca de R$ 50 mil. O dinheiro era proveniente de um bazar que a ONG onde
trabalha havia feito para arrecadar fundos. Ao chegar ao caixa, a servidora
perguntou sobre o valor do depósito. Como o contador não sabia com exatidão,
ela ficou desconfiada. “A funcionária queria saber a origem do dinheiro e como
eu não sabia a quantia exata. Fez vários questionamentos. Chegou a perguntar se
eu era retardado”, recorda.
O mais revoltante, segundo Kim, aconteceu quando a
atendente pediu para falar com o colega — ela acreditava que ele seria o
“patrão” do contador. “Só porque ele era branco, ela achou que era o meu chefe.
Ele não podia ser meu subordinado ou algo assim também? Tirou essa conclusão
pela cor da minha pele”, avalia. Apesar da revolta, o contador chamou o amigo.
“Ele disse que não tinha nada de errado com aquele dinheiro, e ela confiou na
mesma hora, sem nem fazer uma pergunta sequer”, indigna-se.
No dia seguinte, Kim voltou ao banco e pediu para
conversar com o gerente, que passou o nome e a matrícula da funcionária.
“Busquei a Justiça, e ela pagou minimamente pelo que fez”, diz. No tribunal, a
mulher chorou e tentou desmentir o episódio. “Depois do que fez, é fácil se
arrepender.” Segundo o contador, a mulher foi enquadrada no crime de injúria
racial. E critica a atual legislação. “A discriminação está na piada, em
expressões como ‘lista negra’ e ‘inveja branca’. Por que a lista negra é ruim e
a inveja branca é boa? Todo e qualquer crime de racismo deveria ser
inafiançável”, opina.
Para o advogado criminal Bruno Espiñeira, 42 anos, no
entanto, cada delito tem um grau de gravidade, e os casos de injúria dão direito
ao acusado de responder ao processo em liberdade. “Queiramos ou não, essa
distinção existe. Xingar a coletividade e toda uma etnia é muito mais grave do
que ferir a honra de uma só pessoa. Ofender de preta safada é o mesmo que
chamar alguém de nordestino preguiçoso. É inadmissível, mas não cabe a reclusão
total”, analisa.
Opressão
Mesmo tendo a população majoritariamente negra,
episódios como o de Kim são recorrentes na capital federal. O levantamento mais
recente da Pesquisa Distrital por Amostra de Domicílios (Pdad), feita pela
Companhia de Planejamento do Distrito Federal (Codeplan), revela que 54% dos
moradores do quadrilátero são negros.
Além disso, a desigualdade se reflete nos indicadores
socioeconômicos, segundo o presidente da Codeplan, Júlio Miragaya . “O que
prevalece não é a situação de maioria ou de minoria. Existe uma opressão pelo
poder econômico concentrado na população branca. E isso se materializa nos atos
de preconceito. Vivemos uma situação de ilusão, de hipotética democracia
racial, que, na verdade, não existe”, explica.
Cobradora faz denúncia
Um dia após procurar a Polícia Civil para denunciar a
passageira que a xingou de “preta safada” e “negra ordinária”, a cobradora
Claudinei Gomes, 33 anos, conseguiu registrar a ocorrência. Na noite da última
segunda-feira, ela relatou ao Correio ter sido desencorajada a oficializar a
denúncia por um agente da 33ª Delegacia de Polícia (Santa Maria). “Se nem a
polícia quer, quem sou eu para ir atrás dessa mulher? Nunca vou achá-la sozinha”,
desabafou.
A Divisão de Comunicação da Polícia Civil do DF
(Divicom) informou que o caso “foi registrado ontem (hoje) na 33ª DP e já foi
encaminhado ao local de apuração (17ª DP, em Taguatinga).” Ainda segundo a
assessoria da corporação, a vítima foi “categórica ao informar, inclusive em
termo de declaração, que em momento algum foi desencorajada e que foi bem
atendida na delegacia”.
A agressão a Claudinei aconteceu na última
sexta-feira, mesmo dia em que a manicure Tássia dos Anjos, 22 anos, foi vítima
de racismo em um salão de beleza, na 115/116 Sul. Ela pintaria as unhas da
australiana Louise Stephanes Garcia Gaunth, que teria exigido outra
profissional e ainda a chamou de “raça ruim”. A acusada foi presa e libertada
por meio de um habeas corpus no dia seguinte. (AB)
Opinião
O conceito de brasileiro cordial cai por terra ante a
violência que se alastra de norte a sul do país. Não se fala aqui apenas de
atos imoderados como os praticados pelos black blocs. Ou de ação de justiceiros
que algemam pessoas a poste. Ou de bandidos que ateiam fogo em ônibus e em
seres humanos. Ou de sequestros relâmpagos que assustam cidadãos e lhes limitam
o direito de ir e vir. Ou de homicídios que ultrapassam cifras registradas em
países em guerra.
Fala-se do crime de racismo. Discriminar adultos e
crianças com base na cor da pele é, além de caduco, inaceitável. Baseia-se no
prejulgamento de que há seres superiores e inferiores não em decorrência de
obras por eles realizadas, mas de característica física biologicamente herdada.
Os preconceituosos se esquecem de que a escravidão acabou em 1888 e teimam em
manter comportamento de casa grande e senzala.
Brasília, cidade que abriga brasileiros das 27
unidades da Federação, exibe números que envergonham a maior parte da população.
O Disque-Denúncia, serviço do Governo do Distrito Federal, recebeu, em menos de
um ano de criação, quase 8 mil ligações. Delas, 126 mereceram o carimbo de
racismo — média de 11 casos mensais. Em 2012, a Secretaria de Segurança Pública somou
407 ocorrências do gênero.
É constrangedor tomar conhecimento de dois fatos
ocorridos na semana passada. Um deles: cliente de salão de beleza recusou o
atendimento de manicure negra, classificada de “raça ruim”. A cena, filmada por
clientes e pelo circuito interno de tevê do estabelecimento, levou à prisão da
mulher. Apesar de o crime de racismo ser inafiançável, ela ganhou a liberdade
depois de menos de 24 horas de detenção.
O outro: cobradora da Viação Planeta enfrentou
agressão covarde e constrangedora. Durante o trajeto, pane no ônibus impediu
que a porta se abrisse. Contrariada, passageira investiu contra a trabalhadora
chamando-a de “negra ordinária e preta safada”. Depois, desceu calmamente e
caminhou sem pressa, certa da impunidade.
São dois exemplos do vasto prontuário do GDF. Em
nível nacional, o quadro não é melhor. Aliadas à agressão verbal, ocorrem
outras. Fiscalização do Ministério do Trabalho tem identificado casos de
trabalhadores rurais em situação de escravidão. No Entorno, é elevado o número
de assassínio de jovens negros entre 15 e 19 anos. Todos têm a marca do
racismo, da intolerância e da desatualização. Nada mais extemporâneo do que
agir no século 21 como se estivesse no Brasil escravocrata.
Além da punição prevista em lei, impõem-se ações
aptas a evitar que cenas como as da semana passada se repitam. Entre elas,
campanhas governamentais destinadas à mudança de mentalidade da população.
Escolas, igrejas, clubes sociais, meios de comunicação de massa devem colaborar
para deixar a vergonha para trás. O brasileiro pode tornar-se cordial de fato.
Ser movido pelo coração pressupõe valores cristãos e democráticos. Conviver com
as diferenças é fruto da civilização.
Fonte: Correio Braziliense -
19/02/2014