Teve início,
nesta quinta-feira, o julgamento da Ação Penal (AP) 470 no Supremo Tribunal
Federal (STF), com o peso de um ‘julgamento do século’, o que talvez
seja, diante de tão pouco tempo transcorrido desde o réveillon de 2000, quando outros
escândalos campeavam soltos pela República brasileira. Os ministros da Suprema
Corte, reunidos diante da história conhecida como ‘mensalão‘, vão julgar os destinos de 38 pessoas, todas
envolvidas de alguma forma na crise que abalou o primeiro mandato do
ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Os ingredientes políticos de uma
questão agora restrita ao entendimento jurídico pesam de forma inequívoca sobre
as togas dos homens públicos que, dotados de conhecimento suficiente da legislação
brasileira e do processo em si, precisarão expedir um voto sobre a
culpabilidade ou a inocência de cada um dos acusados.
O
procurador-geral da República, Roberto Gurgel, em sua
denúncia, acredita
piamente na história do deputado cassado Roberto Jefferson (PTB) de que o alto
escalão do Executivo pagava uma quantia, em dinheiro vivo, à base aliada, em
troca de apoio aos projetos em votação no Congresso. Jefferson acusou o
ex-ministro-chefe da Casa Civil e deputado igualmente cassado José Dirceu (PT)
de comandar o esquema que, rapidamente, a mídia conservadora batizou de ‘mensalão‘. Dirceu negou, e nega, que tal
circunstância tenha existido. Trata-se, segundo Dirceu, de uma mentira repetida
mil vezes para que pareça verdade, criada para solapar o então torneiro
mecânico que acabara de se tornar presidente da República e, ao mesmo tempo,
reduzir a culpa do denunciante, envolvido em um caso de corrupção explícita nos
Correios, onde um de seus indicados a cargo de confiança recebeu o pacotinho de
R$ 3 mil do preposto de Carlos Augusto Ramos, o bicheiro Carlinhos Cachoeira.
Naquela época, Cachoeira era desconhecido da maioria dos
brasileiros, mas transitava com desenvoltura nos corredores da revista semanal
de ultradireita Veja, a mesma
que publicou a denúncia do ‘mensalão‘,
ora denunciada como braço midiático do esquema criminoso destinado a subtrair
recursos bilionários dos cofres públicos. Encarcerado no presídio da Papuda, em
Brasília, o contraventor é hoje um trapo, se comparado ao influente ‘empresário
na área de jogos’, como seus ex-aliados tentavam classificá-lo. Foi abandonado
à própria sorte. Chegou a reclamar com a mulher, Andressa Mendonça, que se
sentia uma espécie de leproso, e já estaria negociando a delação premiada, para
desasossego de políticos das mais variadas legendas, em todo o país. Se fechar
rápido o acordo com a Justiça Federal, Cachoeira
ainda poderá influenciar no julgamento da AP 470, tamanho é o arquivo que deve
disponibilizar sobre o processo de arrecadação de dinheiro sujo para campanhas
eleitorais e da corrupção em curso no Brasil.
A Corte de
Justiça mais alta do país, nesta tarde, começou a determinar se prevalece a
tese de que uma quadrilha organizada encarregava-se, de forma sistemática, do
furto constante ao Erário, com a distribuição do butim aos aliados no
Congresso, ou se a lambança toda era, na realidade, manobra de recursos
originários do caixa 2 de empresas, muitas delas com contratos fechados na
esfera pública, para as campanhas eleitorais dos partidos políticos.
Na primeira hipótese,
Dirceu, o então ministro mais poderoso do governo Lula e seu provável sucessor,
em lugar da atual presidenta, Dilma Rousseff, corre o risco de ser condenado a
penas duras, equivalentes à guilhotina para qualquer pretensão a uma carreira
pública, no futuro. Se prevalecer o entendimento de que, na realidade, o
publicitário Marcos Valério organizava um propinoduto consistente, pronto a
abastecer as campanhas de candidatos de partidos que iam desde o PT ao PSDB,
para os mais variados cargos no Executivo e no Legislativo, com ramificações no
Judiciário, Dirceu tem uma grande chance de sair livre e com moral suficiente
para retomar seu mandato na Câmara Federal, em uma nova eleição.
Seja lá qual for
a sentença na cabeça de cada juiz, o que quer a opinião pública brasileira e o
sagrado direito à Justiça determina é que seja prolatada com base nas provas
constantes dos autos e não em historinhas mastigadas pela mídia de propriedade
daquelas mesmas empresas aliadas, de alguma forma, ao esquema criminoso que reúne,
há mais décadas do que já teve o século deste julgamento, os piores pesadelos à
lisura e à probidade exigidas à res publica.
O presidente do Congresso, senador
José Sarney, depositou o seu voto de confiança em um julgamento justo para
todos os acusados, no STF. Da mesma forma, o jornalista do diário
conservador paulistano Folha de S. Paulo
Jânio de Freitas afirma que os brasileiros querem “é a imparcialidade nos
julgamentos todos”.
“É a equanimidade
entre as decisões voltadas para os desprovidos e aquelas que se dirigem aos
possuidores de riqueza ou de força política. É o direito à justiça também
quanto ao tempo, porque, mesmo se favorável, a decisão que tarda dez, 20, 30
anos nunca fará justiça. É o julgamento limpo do ‘mensalão’, para condenar sem maldade ou absolver com
grandeza”, afirma Jânio de Freitas.
Ainda segundo o
cronista, no próprio diário que deu voz à história contada por Roberto
Jefferson, embasa a acusação do procurador Gurgel e faz dobradinhas com a
revista ligada ao esquema de Cachoeira,
compete aos ministros do STF abstrair da pressão exercida pela mídia que pende
para o linchamento de José Dirceu. Em um texto recente, Freitas chega a afirmar
que “o julgamento do ‘mensalão‘
pelo Supremo Tribunal Federal é desnecessário”.
“Entre a
insinuação mal disfarçada e a condenação explícita, a massa de reportagens e
comentários lançados agora, sobre o ‘mensalão’,
contém uma evidência condenatória que equivale à dispensa dos magistrados e das
leis a que devem servir os seus saberes. Os trabalhos jornalísticos com esforço
de equilíbrio estão em minoria quase comovente”, conclui o cronista.
Fonte: Correio do Brasil