segunda-feira, 24 de novembro de 2025

Reuniões de Governo Não São Crime: A Distorsão Jurídica que Precisa Ser Denunciada

foto criada por IA

Por Gleisson Coutinho

O que causa indignação, antes de qualquer coisa, é ver uma longa lista de autoridades de Estado todas elas integrantes formais do governo eleito e em pleno exercício de funções institucionais tratadas como se fossem membros de uma quadrilha clandestina, quando o que se tem, à luz dos fatos públicos, é que foram chamadas para reuniões de trabalho, para despachos, para análise de cenários, para discutir política pública e transição de governo. Não há um único ato formal de convocação que diga “reunião de complô” ou “encontro de associação criminosa”; o que há, nos registros oficiais, são reuniões de governo. E, mesmo assim, o discurso jurídico que se constrói contra essas pessoas parece ignorar por completo a fronteira entre ato político, ato administrativo e ato penalmente relevante.

Nominalmente, foram arrastados para o rótulo de “trama golpista” o ex-presidente Jair Messias Bolsonaro e figuras centrais do governo, como o general da reserva Walter Souza Braga Netto, o delegado e ex-ministro da Justiça Anderson Gustavo Torres, o almirante Almir Garnier Santos, o general da reserva Augusto Heleno Ribeiro Pereira, o general Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira, o deputado e ex-diretor da Abin Alexandre Ramagem Rodrigues e o tenente-coronel Mauro César Barbosa Cid. A eles se somam, ainda, militares de alta e média patente e agentes de Estado vinculados às Forças Armadas e à Polícia Federal: Hélio Ferreira Lima, Rafael Martins de Oliveira, Rodrigo Bezerra de Azevedo, Wladimir Matos Soares, Sérgio Ricardo Cavaliere de Medeiros, Bernardo Romão Corrêa Netto, Fabrício Moreira de Bastos, Márcio Nunes de Resende Júnior, Ronald Ferreira de Araújo Júnior, além de Ângelo Denicoli, Reginaldo Abreu, Marcelo Bormevet, Ailton Gonçalves Moraes Barros, Giancarlo Rodrigues, Guilherme Almeida e Carlos Rocha. Todos, sem exceção, ocupavam ou ocuparam postos formais do Estado brasileiro, com agenda oficial, hierarquia, cadeia de comando, despacho, memorando, ordem de serviço. Todos foram, em última análise, chamados para reuniões de trabalho, ainda que com forte carga política e institucional, jamais para integrar um “pacto secreto” típico da criminalidade organizada como se vê no Código Penal.

E aqui entra o ponto jurídico que torna esse cenário ainda mais inquietante: o tratamento dado a esses encontros como se fossem atos preparatórios de um crime consumado. No Direito Penal brasileiro, atos preparatórios são aquelas primeiras etapas voltadas à eventual prática de um crime, mas que, por si sós, são neutras ou lícitas. São condutas que, vistas isoladamente, não possuem carga ilícita: comprar uma faca, pesquisar um tema sensível na internet, reunir-se para discutir política, organizar dados, pedir pareceres, convocar reuniões. A neutralidade é inerente a esses atos. Comprar uma faca pode ser para cozinhar; pesquisar sobre armamentos pode ser para fins acadêmicos; reunir ministros e comandantes pode ser, e normalmente é, para tratar da conjuntura institucional. O que transforma um ato neutro em algo suspeito é a intenção subjetiva do agente o dolo mas essa intenção não se enxerga olhando apenas para o rótulo “reunião” na agenda, e sim para atos que iniciem, concretamente, a execução de um crime.

Outro traço essencial dos atos preparatórios é a sua falta de idoneidade para consumar, por si sós, qualquer crime. Estocar material, estudar cenários, escrever rascunhos, discutir hipóteses: nada disso, isoladamente, atinge um bem jurídico penalmente protegido. Da mesma forma que estocar material para montar um explosivo não causa, por si só, explosão alguma, reunir autoridades em um gabinete não derruba instituições. Para que se fale seriamente em crime, é preciso distinguir com rigor o que é mero ato preparatório do que é ato de execução. Atos preparatórios antecedem o início da execução e são remotos, genéricos; atos executórios, ao contrário, iniciam a prática do verbo nuclear do tipo penal e, em cadeia, conduzem direta e imediatamente à consumação. A doutrina majoritária adota, no Brasil, referenciais objetivos: começa a execução quando o agente pratica o primeiro ato que integra a figura típica, que já coloca o bem jurídico em perigo concreto.

Os exemplos clássicos ajudam a demonstrar o absurdo de esticar essa lógica até o ponto de criminalizar reuniões de governo. No furto, comprar um alicate é ato preparatório; quebrar a fechadura da janela já é ato de execução. No homicídio, adquirir uma arma e seguir a vítima é preparatório; apontar a arma e puxar o gatilho é execução. No estelionato, fabricar documentos falsos em casa é preparatório; apresentá-los à vítima para obter vantagem é execução. Ninguém em sã consciência pretenderia condenar alguém por furto consumado apenas porque ele comprou um alicate. No entanto, no contexto político recente, tenta-se transformar reuniões de trabalho, discursos, minutas não aplicadas e análises de conjuntura em quase “provas” de crime consumado, como se o Direito Penal fosse um instrumento para punir o pensamento, a intenção presumida ou o alinhamento político.

A própria legislação brasileira é cristalina: a regra geral é a impunidade dos atos preparatórios. O sistema penal só deve intervir quando há lesão ou, pelo menos, perigo concreto ao bem jurídico tutelado. Os atos preparatórios, por serem remotos e não idôneos, possuem, em regra, lesividade ínfima ou potencial meramente abstrato. Daí decorrem princípios estruturantes como o da insignificância que afasta o Direito Penal de situações de mínima relevância e o da fragmentariedade, segundo o qual a Lei Penal só se ocupa dos ataques mais graves a bens jurídicos essenciais, deixando o restante para outros ramos do Direito ou para a esfera política e ética. Intervir na fase preparatória, sem previsão legal expressa, é uma intromissão precoce, desproporcional e perigosa do Estado na esfera de liberdade do indivíduo e, aqui, na esfera de atuação de agentes públicos no exercício da função.

Há ainda a dificuldade intrínseca de se provar o dolo específico em atos preparatórios. Como são condutas ambíguas, que podem ter dezenas de finalidades lícitas, a leitura maliciosa de cada gesto abre espaço para criminalizar qualquer conduta com base em suposição. Reuniões, minutas, memorandos, conversas, estudos de cenário: tudo pode ser relido retroativamente como “plano criminoso”, se o intérprete quiser. É exatamente por isso que a dogmática penal sempre tratou com extrema cautela a punição dessa fase, reservando ao legislador a tarefa de, quando muito, transformar certos atos preparatórios em crimes autônomos, de forma expressa e limitada.

E é aqui que entra a grande exceção: os casos em que a lei, por razões de política criminal, decide antecipar a tutela penal e tipificar como crime autônomo aquilo que, em tese, seria apenas preparação para outro delito. É o que ocorre, por exemplo, com a associação criminosa do artigo 288 do Código Penal, que pune a associação de três ou mais pessoas para a prática de crimes. Nesse caso, a própria união com esse fim ilícito já é tratada como crime em si. Também na Lei de Drogas, o artigo 33 criminaliza importar, preparar, produzir, fabricar, adquirir, vender, expor à venda etc., de forma que verbos que poderiam ser vistos como meros preparativos são elevados à condição de núcleo típico. Em outros contextos, legislações específicas punem condutas como fabricar, adquirir ou portar instrumentos tipicamente destinados à prática de crimes (como chaves falsas), ou mesmo estocar produtos de modo a artificialmente manipular o mercado, como nos crimes contra a economia popular. Em todos esses casos, porém, há um ponto em comum: o legislador nomeia expressamente o comportamento e o transforma em tipo penal.

Quando se olha para o quadro das condenações mencionadas, a pergunta que se impõe, com um certo grau de indignação legítima, é: em qual desses moldes legais se enquadram as reuniões de trabalho realizadas por Bolsonaro, seus ministros, comandantes militares, delegados e assessores? Houve associação estável de três ou mais pessoas com o fim específico, claro e comprovado de cometer crimes definidos? Ou houve reuniões políticas, discussões de bastidores, críticas ao resultado eleitoral, análises de hipótese de decretação de medidas de exceção, como tantos governos já fizeram ao longo da história, sem que isso fosse automaticamente transmutado em crime? Houve atos executórios que tenham, de fato, colocado em marcha um golpe de Estado como mobilização de tropas para tomar prédios, expedição de ordens formais nesse sentido, supressão concreta de poderes de outros entes? Ou houve, sobretudo, atos preparatórios amplos, genéricos, muitos deles em nível de discurso, que, à luz da dogmática penal, não seriam puníveis, ainda que se reprove politicamente seu conteúdo?

A conclusão jurídico-dogmática, por mais que desagrade a certos setores, é simples: a regra no Direito Penal brasileiro é a impunidade dos atos preparatórios. Só se pune a preparação quando a lei transformou expressamente aquele comportamento em crime autônomo. Caso contrário, a intervenção penal só se legitima a partir dos atos de execução tentativa ou consumação, e não na fase de mera cogitação, estudo ou planejamento genérico. Misturar reunião de governo com associação criminosa, tratar toda crítica interna como complô, criminalizar a elaboração de minutas que nunca saíram do papel, significa rasgar, na prática, esse limite básico.

Diante disso, afirmar que todos os nomes hoje carimbados como “condenados por trama golpista” foram, na verdade, convocados para reuniões de trabalho, e não para encontros típicos de organização criminosa, não é negar a gravidade de eventuais excessos políticos; é apenas recordar que o Direito Penal não existe para punir alinhamento ideológico, reuniões institucionais ou atos preparatórios neutros. Existe para reagir a ataques concretos, atos executórios e lesões reais. Quando se abandona essa fronteira e se passa a chamar de “crime” aquilo que são, na origem, atos políticos e preparatórios, abandona-se também a segurança jurídica e abre-se caminho para um Direito Penal de exceção, onde tudo o que desagrada pode ser, amanhã, reclassificado como delito. E isso, em qualquer democracia séria, deveria causar mais que estranheza: deveria causar profunda indignação.

Fonte A redação


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