A sessão desta
quarta-feira (3/11) do Plenário do Supremo Tribunal Federal reacendeu a
discussão entre a influência da moral no Direito e em julgamentos judiciais.
Cármen Lúcia disse que STF julga com base na Constituição, e não na moral
Após a ministra Cármen Lúcia, relatora, votar pela validade nas normas que instituíram a Assistência Judiciária municipal de Diadema (SP), o ministro Nunes Marques, que divergiu, declarou que "argumentos morais influem, mas não podem modificar o Direito".
"Porque, se
assim o for, quem vai corrigir a moral?", questionou o ministro, opinando
que "o Direito tem sido refém de opiniões morais".
Depois de Nunes
Marques terminar de apresentar seu voto, Cármen pediu a palavra e destacou que
em seu voto "nada constou sobre moral, até porque a questão é relativa a
uma inconstitucionalidade formal, se o município tinha competência ou não para
estabelecer serviço de assistência judiciária".
"Não houve
nenhum argumento que não estivesse calcado na Constituição", ressaltou a
relatora. Ela deixou claro que se preocupa com a moral, inclusive com a falta
de moral no país, mas não para proferir decisões.
Em resposta, Nunes
Marques esclareceu que quis dizer que o Direito é refém da apreciação moral das
pessoas, não do Judiciário. Também disse que não fez referência ao voto da
relatora e ao funcionamento do sistema de Justiça.
Explicou que
interveio porque poderia parecer que o STF fazia julgamentos morais. Contudo,
apontou a ministra, a Corte apenas julga de acordo com a Constituição.
Posteriormente, o
ministro Luís Roberto Barroso declarou que é um intérprete que,
invariavelmente, faz uma leitura moral da Constituição. Ou seja, lê todo o
Direito, inclusive infraconstitucional, à luz da Carta Magna.
Barroso explicou
que, em linhas gerais, há três grandes escolas filosóficas do Direito. A
primeira foi a do jusnaturalismo, em que Direito e moral estavam imbricados.
"Portanto, para os antigos, o Direito não era criado, mas revelado. O
intérprete deveria encontrar a justiça no caso concreto — em um primeiro
momento, por razões religiosas, depois racionais", disse.
Em reação ao
jusnaturalismo, surgiu o positivismo jurídico pré-Segunda Guerra Mundial,
afirmou o ministro. Tal corrente excluiu do papel do intérprete qualquer
valoração sobre a justiça da norma, afastando-a da moral.
Após a Segunda
Guerra, foi desenvolvida a escola do pós-positivismo, destacou Barroso, dizendo
seguir esta corrente. Tal linha reconhece que o Direito e a moral são coisas
distintas, mas entende que a leitura do Direito é feita à luz da moral
— não a moral particular, de cada indivíduo, mas os valores morais
abrigados na Constituição, explicou o magistrado. Como exemplo, citou os
princípios da igualdade e da dignidade humana, que podem ser usados como lentes
para analisar a validade e aplicação de leis.
"Conforme o
jurista alemão Robert Alexy, o Direito tem uma pretensão de correção moral, não
sendo apenas as normas emanadas das fontes competentes", mencionou
Barroso.
Dessa maneira, à
luz do princípio de acesso à Justiça, o ministro entendeu que município pode
criar serviço de assistência jurídica a hipossuficientes. Por 9 votos a
1, prevaleceu tal posição,
ficando vencido Nunes Marques.
Injúria racial
Em artigo publicado nesta quarta na ConJur, o jurista Lenio
Streck criticou a decisão do STF de
equiparar a injúria racial ao crime de racismo.
Para Lenio, "o
STF fez uma apreciação moral sobre como ele acha que deve ser o Direito",
violando "a mínima secularização exigida no Estado democrático de
Direito".
"Como se pode
ver, meu problema com a moralização indevida do Direito por parte do Judiciário
é a fragilização desse princípio básico da secularização do Direito. Quem diz
qual crime pode virar imprescritível? Quais as condições epistemológicas para
dizer isso?", questionou, apontando que tal tipo de decisão fragiliza o
próprio Supremo.
O jurista disse
ficar preocupado com uma decisão, em matéria penal, que ultrapassa os
limites que a secularização do Direito coloca. Entre eles, o de que o
Judiciário não legisla.
"Ninguém
discorda da frase inicial do voto do ministro Edson Fachin no HC 154.248: 'Há
racismo no Brasil. É uma chaga infame que marca a interface entre o ontem e o
amanhã'. Contudo, o Judiciário, repito, não legisla. E, de novo: de um 'é'
não se tira um 'deve'", avaliou Lenio Streck.