quinta-feira, 4 de novembro de 2021

Ministros do STF discutem influência da moral no Direito e no Judiciário

A sessão desta quarta-feira (3/11) do Plenário do Supremo Tribunal Federal reacendeu a discussão entre a influência da moral no Direito e em julgamentos judiciais.

Cármen Lúcia disse que STF julga com base na Constituição, e não na moral



Após a ministra Cármen Lúcia, relatora, votar pela validade nas normas que instituíram a Assistência Judiciária municipal de Diadema (SP), o ministro Nunes Marques, que divergiu, declarou que "argumentos morais influem, mas não podem modificar o Direito".

"Porque, se assim o for, quem vai corrigir a moral?", questionou o ministro, opinando que "o Direito tem sido refém de opiniões morais".

Depois de Nunes Marques terminar de apresentar seu voto, Cármen pediu a palavra e destacou que em seu voto "nada constou sobre moral, até porque a questão é relativa a uma inconstitucionalidade formal, se o município tinha competência ou não para estabelecer serviço de assistência judiciária".

"Não houve nenhum argumento que não estivesse calcado na Constituição", ressaltou a relatora. Ela deixou claro que se preocupa com a moral, inclusive com a falta de moral no país, mas não para proferir decisões.

Em resposta, Nunes Marques esclareceu que quis dizer que o Direito é refém da apreciação moral das pessoas, não do Judiciário. Também disse que não fez referência ao voto da relatora e ao funcionamento do sistema de Justiça.

Explicou que interveio porque poderia parecer que o STF fazia julgamentos morais. Contudo, apontou a ministra, a Corte apenas julga de acordo com a Constituição.

Posteriormente, o ministro Luís Roberto Barroso declarou que é um intérprete que, invariavelmente, faz uma leitura moral da Constituição. Ou seja, lê todo o Direito, inclusive infraconstitucional, à luz da Carta Magna.

Barroso explicou que, em linhas gerais, há três grandes escolas filosóficas do Direito. A primeira foi a do jusnaturalismo, em que Direito e moral estavam imbricados. "Portanto, para os antigos, o Direito não era criado, mas revelado. O intérprete deveria encontrar a justiça no caso concreto — em um primeiro momento, por razões religiosas, depois racionais", disse.

Em reação ao jusnaturalismo, surgiu o positivismo jurídico pré-Segunda Guerra Mundial, afirmou o ministro. Tal corrente excluiu do papel do intérprete qualquer valoração sobre a justiça da norma, afastando-a da moral.

Após a Segunda Guerra, foi desenvolvida a escola do pós-positivismo, destacou Barroso, dizendo seguir esta corrente. Tal linha reconhece que o Direito e a moral são coisas distintas, mas entende que a leitura do Direito é feita à luz da moral — não a moral particular, de cada indivíduo, mas os valores morais abrigados na Constituição, explicou o magistrado. Como exemplo, citou os princípios da igualdade e da dignidade humana, que podem ser usados como lentes para analisar a validade e aplicação de leis.

"Conforme o jurista alemão Robert Alexy, o Direito tem uma pretensão de correção moral, não sendo apenas as normas emanadas das fontes competentes", mencionou Barroso.

Dessa maneira, à luz do princípio de acesso à Justiça, o ministro entendeu que município pode criar serviço de assistência jurídica a hipossuficientes. Por 9 votos a 1, prevaleceu tal posição, ficando vencido Nunes Marques.

Injúria racial
Em artigo publicado nesta quarta na ConJur, o jurista Lenio Streck criticou a decisão do STF de equiparar a injúria racial ao crime de racismo. 

Para Lenio, "o STF fez uma apreciação moral sobre como ele acha que deve ser o Direito", violando "a mínima secularização exigida no Estado democrático de Direito".

"Como se pode ver, meu problema com a moralização indevida do Direito por parte do Judiciário é a fragilização desse princípio básico da secularização do Direito. Quem diz qual crime pode virar imprescritível? Quais as condições epistemológicas para dizer isso?", questionou, apontando que tal tipo de decisão fragiliza o próprio Supremo.

O jurista disse ficar preocupado com uma decisão, em matéria penal, que ultrapassa os limites que a secularização do Direito coloca. Entre eles, o de que o Judiciário não legisla.

"Ninguém discorda da frase inicial do voto do ministro Edson Fachin no HC 154.248: 'Há racismo no Brasil. É uma chaga infame que marca a interface entre o ontem e o amanhã'. Contudo, o Judiciário, repito, não legisla. E, de novo: de um 'é' não se tira um 'deve'", avaliou Lenio Streck.