sábado, 1 de junho de 2013

Interditada, refinaria de Manguinhos deve R$ 1 bilhão ao Rio

Distribuidora Manguinhos foi parcialmente interditada por vazamento em uma de suas unidades


Interditada parcialmente pelo Instituto Estadual do Ambiente (Inea) e pela Secretaria Estadual do Ambiente por causa de um vazamento de álcool em suas instalações esta semana, a Manguinhos Distribuidora e a Refinaria Manguinhos, braço de refino do grupo, devem ao Fisco estadual cerca de R$ 1 bilhão. A dívida resulta do uso indiscriminado de precatórios para compensar créditos tributários, o que vem sendo alvo de investigação na Secretaria Estadual da Fazenda do Rio, e é apontado por fontes do governo e do setor de combustíveis como a razão para que a distribuidora tenha crescido no mercado de etanol tão rapidamente.

Com atuação no ramo há apenas três anos, Manguinhos Distribuidora se tornou a 10ª empresa em vendas de etanol no Brasil em 2012, entre 150 companhias, segundo dados da Agência Nacional do Petróleo (ANP). Em 2010, quando a empresa aparece pela
primeira vez no ranking nacional da ANP, ocupava o 31º lugar, com participação de 0,4%. No ano passado, ela respondeu por uma fatia de 1,9% do mercado. Parece pouco, mas esse percentual representou a comercialização de 188 milhões de litros de etanol em 2012. As líderes nacionais são BR, controlada pela Petrobras, e Raízen, associação da Shell com a Cosan.

A ANP não divulga a participação de mercado por estado. Fontes do mercado de combustíveis acreditam que Manguinhos venda a maior parte do produto no Rio de Janeiro, sede da distribuidora e da refinaria. Considerando 100% das vendas em território fluminese, Manguinhos abocanharia uma fatia de 43% do mercado, quase o dobro da BR. O feito, dizem técnicos do setor de combustíveis, seria resultado dos preços abaixo do mercado cobrados pela empresa a seus clientes. Procurada, a empresa não se pronunciou. ...

Acompanhando o histórico de preços publicados e dadas a diferenças (entre eles) não dá para entender que não haja alguma fraude no aspecto tributário, ou de sonegação ou de inadimplência. Isso cria uma concorrência desleal, fazendo com que essa distribuidora (Manguinhos) seja hoje líder de mercado (no Rio) e alijando do mercado distribuidoras menores que não têm condição de competir com ela — afirma Helvio Rebeschini, diretor de Planejamento Estratégico do Sindicato das Empresas Distribuidoras de Combustíveis e de Lubrificantes (Sindicom), que reúne as principais empresas do setor.

Levantamento do sindicato com base em dados da ANP mostra que Manguinhos Distribuidora vende etanol aos postos do Estado do Rio a um preço médio 10% a 15% abaixo do custo de venda das distribuidoras, uma diferença de R$ 0,25 a R$ 0,30 por litro. Na última semana de abril, por exemplo, o litro de etanol foi vendido por Manguinhos a um preço médio de R$ 1,853. O custo médio do produto para as distribuidoras (incluindo o valor do combustível, o frete para os postos e os impostos) na mesma semana foi de R$ 2,088.

Esse desconto só é possível, segundo técnicos da Secretaria Estadual da Fazenda, porque a empresa lança mão de um recurso para protelar o pagamento de impostos, recorrendo ao mercado de precatórios. O esquema envolveria ainda uma outra empresa, a Rodopetro, que, amparada pela Justiça, consegue driblar a barreira fiscal interestadual quando entra no Rio trazendo o etanol de outros estados. O Rio praticamente não produz o combustível e, por isso, as empresas precisam comprá-lo fora.

Mudanças no ranking

Segundo técnicos da Secretaria Estadual de Fazenda, a Rodopetro traz o combustível, principalmente de São Paulo e Minas Gerais, e não paga o ICMS ao cruzar a divisa com o Rio porque conseguiu ser enquadrada no convêncio 110 do Conselho Nacional de Política Fazendária (Confaz). Esse convênio, de 2007, permite que as distribuidoras de etanol recolham o ICMS referente a suas vendas no dia 10 do mês subsequente. Ou seja, várias empresas usam esse mecanismo.

No entanto, dois anos depois de criado o convênio, o governo do Estado do Rio determinou que apenas as distribuidoras que estavam em dia com o Fisco estadual poderiam fazer uso da regra. As demais teriam que pagar os impostos devidos quando ingressassem em território fluminense. A Rodopetro, que estava inadimplente, conseguiu, no entanto, uma liminar em 2009 que a manteve apta a seguir as normas do convênio.
Naquele ano, a empresa aparecia no ranking nacional de vendas de etanol, da ANP, em 17º lugar. No ano seguinte, caíra para a 23ª posição. Em 2011 e 2012, justamente quando Manguinhos Distribuidora ganha fôlego e sobe no ranking, a Rodopetro sequer aparece na lista da ANP.

Segundo os técnicos da Fazenda, a Rodopetro vende quase a totalidade do álcool trazido para o Rio à Manguinhos Distribuidora, desrespeitando a resolução número 7 da ANP, que limita a venda entre distribuidoras a 5% do total. Além disso, a companhia não recolhe o ICMS devido no dia 10, como deveria fazer. Manguinhos, por sua vez, também não recolhe o ICMS devido. A cada operação de venda, Manguinhos entra com pedido na Secretaria Estadual de Fazenda do Rio e pleiteia o uso de precatórios para pagar os impostos. O pedido é indeferido pela secretaria e a distribuidora recorre a todas as esferas administrativas, protelando a quitação dos débitos. Com isso, a dívida se avoluma. A secretaria não divulga valores, alegando sigilo fiscal.

O grupo Manguinhos entrou com pedido de recuperação judicial em 13 de janeiro deste ano na Justiça do Paraná, mas o processo foi suspenso no último dia 8 de maio. Em documento anexado ao processo de recuperação judicial do grupo, o procurador Bruno Fernandes Dias, da Procuradoria Geral do Estado do Rio, afirma que “os débitos da Refinaria e da Distribuidora para com o Estado do Rio de Janeiro, entre inscritos em Dívida Ativa perante a Procuradoria-Geral do Estado e aqueles em fase de cobrança perante a Secretaria de Fazenda, giram em torno da impressionante marca de um bilhão de reais”. A petição do procurador data de 23 de março deste ano e consiste num pedido para que a recuperação judicial do grupo corra na Justiça do Rio.

O pedido de recuperação judicial de Manguinhos foi aceito pelo juiz Evandro Portugal, da 1ª Vara Cível de Araucária, na região metropolitana de Curitiba em uma semana. O município é sede da Gasdiesel, uma das quatro empresas do grupo (Manguinhos Refinaria, Manguinhos Distribuidora, Manguinhos Química e Gasdiesel). A suspensão do processo, em maio, atendeu a um pedido da Cattalini Terminais Marítimos, sediada em Paranaguá (PR). A empresa é a maior credora do grupo Manguinhos e tem a receber R$ 5,8 milhões.

 A nosso ver, o processo de recuperação judicial deveria correr na Justiça do Rio porque antes de Manguinhos entrar com o pedido no Paraná já havia uma solicitação de falência por um dos credores (a SRR Publicidade) ajuizada em tribunal do Rio. Além disso, o principal ativo do grupo é a refinaria, que fica no Rio, e a maior parte dos credores também é sediada no Rio — afirma Rodrigo Muniz Santos, do escritório Muniz Advogados, que defende a Cattalini.

Terreno em desapropriação

A dívida total do grupo Manguinhos com 161 credores é de R$ 9,8 milhões, segundo documentos anexados ao pedido de recuperação judicial da empresa. No pedido, o grupo cita dificuldades econômicas que vem enfrentando, entre elas a interdição, por sete meses, do oleoduto que liga a área portuária do Rio à refinaria Manguinhos. A interdição ocorreu por causa de uma explosão no duto em janeiro de 2012. De acordo com informações que constam na ação, a paralisação da atividade do oleoduto aumentou o custo de transporte terrestre dos insumos usados pela refinaria em mais de R$ 50 milhões.

A situação do grupo se agravou quando o governador do Rio, Sérgio Cabral, decretou o terreno onde está a refinaria de utilidade pública, para fins de desapropriação, em outubro do ano passado. Em janeiro deste ano, Manguinhos deixou de refinar petróleo e basicamente se dedica à distribuição de etanol. O decreto está sendo contestado na Justiça pela empresa. De acordo com a Procuradoria Geral do Rio de Janeiro, há sete ações — três no Rio, três em São Paulo e uma em Brasília — contestando o ato de Cabral, ainda sem decisão judicial.

Fundada em 1954, no auge da campanha "O petróleo é nosso", Manguinhos já mudou o foco de sua atuação algumas vezes para sobreviver no mercado de combustíveis. Entre setembro de 2005 e março de 2010, a empresa não refinou uma gota de petróleo sequer, segundo dados da ANP. A interrupção se deveu à escalada do preço do petróleo no mercado internacional, que praticamente inviabilizou suas operações. Dois anos depois de ter sido comprada pelo grupo Andrade Magro — até 2008 o controle estava nas mãos da família Peixoto de Castro —, Manguinhos voltou a refinar petróleo, mas em 2012 respondeu por apenas 0,5% do refino nacional. O avanço no setor de etanol nos últimos três anos se tornou questão de sobrevivência para a empresa.

Procurados, os advogados do grupo Manguinhos não retornaram as ligações, e nenhum representante da Rodopetro foi localizado para comentar o teor da reportagem. A ANP disse não ver risco de concorrência predatória no segmento de etanol “porque a distribuidora não tem poder de mercado para tal”.


Fonte: O Globo - 01/06/2013