Para que serve a 'lista suja' do trabalho escravo?
Depois de três meses suspensa por decisão liminar
do Supremo Tribunal Federal (STF), a chamada "lista suja" do trabalho
escravo deverá voltar a ser publicada nesta semana, após uma manobra do
Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) e da Secretaria de Direitos Humanos da
Presidência da República (SDH).
Na semana passada, o
Ministério e a Secretaria assinaram uma nova Portaria Interministerial que
atualiza as regras para a publicação da lista, tornando ineficaz a anterior,
que foi afetada pela liminar do STF...
A lista é considerada um
dos principais instrumentos de combate ao trabalho escravo no Brasil, e um
modelo para outros países. A partir dela, empresas e bancos públicos podem
negar crédito, empréstimos e contratos a fazendeiros e empresários que usam
trabalho análogo ao escravo.
O ministro do Supremo
Ricardo Lewandowski – que, em dezembro de 2014, decidiu sozinho pela suspensão
imediata da lista durante o recesso de final de ano da corte – havia acatado um
pedido da Associação Brasileira de Incorporadoras Imobiliárias (Abrainc), organização
que reúne algumas das principais empreiteiras do país.
Entre as construtoras
que fazem parte da
associação estão Andrade Gutierrez, Moura Dubeux e
Odebrecht, denunciada pelo Ministério Público do Trabalho por uso de trabalho
escravo após reportagem da BBC Brasil.
A nova lista revelará,
com base na Lei de Acesso à Informação (LAI), de 2011, cerca de 400 nomes de
empregadores que foram flagrados por auditores fiscais usando trabalho análogo
à escravidão e que tiveram suas infrações confirmadas pelo MTE desde dezembro
de 2012.
Segundo o chefe da
Divisão de Fiscalização para Erradicação do Trabalho Escravo (Detrae) do MTE,
Alexandre Lyra, a ideia de assinar uma nova portaria foi inspirada em um pedido
da ONG Repórter Brasil em janeiro de 2015, que invocou a LAI para
"driblar" a decisão do Supremo e produzir uma nova lista suja.
"Já falávamos sobre
aperfeiçoar a portaria há uns dois anos por causa da LAI, mas não conseguíamos
reunir as equipes para fazer isso", afirma Lyra.
"Talvez, se não
tivéssemos sido alcançados pela liminar do Supremo, estivéssemos voltando nossa
atenção para outras coisas. Mas o momento criou a oportunidade."
Disputa com construtoras
Quando o trabalho é
análogo à escravidão?
Segundo o Código Penal
Brasileiro, o trabalho análogo ao escravo é caracterizado pelos seguintes
elementos, que podem ser comprovados juntos ou isoladamente:
Condições degradantes de
trabalho, que coloquem em risco a saúde e a vida do trabalhador;
Jornada exaustiva, em
que o trabalhador é submetido a esforço excessivo ou sobrecarga de trabalho;
Trabalho forçado,
situação em que a pessoa é mantida no serviço através de fraudes, isolamento
geográfico ou ameaça e violência;
Servidão por dívida,
situação em que a pessoa é forçada a contrair ilegalmente uma dívida que o
obriga a trabalhar para pagá-la.
A Ação Direita de
Inconstitucionalidade (ADI) da Abrainc pedia a suspensão da lista com base em
críticas à Portaria Interministerial nº 2, de 2011, que determinava os
critérios para a publicação dos nomes no site do MTE.
A associação de
empreiteiras afirma que a divulgação dos nomes deveria ser regulada por uma lei
e causa efeitos negativos às empresas, que não teriam direito de defesa.
"Ela (a
fiscalização) simplesmente indica dispositivos da Consolidação das Leis do
Trabalho (CLT). Com isso, as empresas não têm nem como se defender da acusação,
pois a CLT, como sabido, não diz nada sobre trabalho em condições análogas à
escravidão", afirmou Rubens Menin, o presidente da Abrainc, em nota à BBC
Brasil.
A Abrainc se refere ao
fato de que é o Código Penal Brasileiro, no artigo 149, que caracteriza o
trabalho análogo ao escravo. O MTE, no entanto, instaura um processo
admistrativo, e não penal, a partir dos relatórios de seus fiscais.
Em favor da lista, a
Procuradoria-Geral da República (PGR) pediu a revogação da liminar do ministro
Lewandowski, afirmando que os compromissos internacionais assinados pelo
Brasil, com força de lei, obrigam o país a adotar medidas para combater a
escravidão contemporânea.
"Quem não deve, não
teme. Se eles (associados da Abrainc) não devessem, não precisariam estar
preocupados em aparecer na lista", afirmou à BBC Brasil o
subprocurador-geral da República Oswaldo José Barbosa Silva.
Leia mais: 'A vida no
Brasil não é normal, é só trabalho', conta boliviana que foi escravizada em SP
O Ministério do Trabalho
diz deixar claro, na nova portaria, que as empresas só são incluídas na lista
após terem o direito de defesa em duas instâncias no processo.
"O Código Penal é
uma referência para a gente, mas nossa competência é
administrativo-trabalhista. A gente firma uma posição de que algo é trabalho
análogo ao escravo com base na CLT e nos acordos que o Brasil ratificou. Pela
lei, o auditor fiscal tem o dever de avaliar se há trabalho escravo", diz
Alexandre Lyra.
"Se falamos que
naquela propriedade não havia condições mínimas de higiene, de segurança e de
saúde, e que o fiscal teve que resgatar os trabalhadores, o empregador tem a
possibilidade de se defender. Se ele não consegue, vai para a lista."
Ministro do Trabalho e
Secretária de Direitos Humanos são responsáveis por publicação de lista suja do
trabalho escravo
O MTE e a PGR também
afirmam que a lista não obriga ninguém a punir os empregadores cujos nomes
foram publicados, porque se trata apenas da divulgação de ações públicas. A
Abrainc, no entanto, discorda.
"Há inegável
impacto na imagem das empresas e em todas as suas linhas de financiamento que
são suspensas", diz Menin. O empresário afirmou ainda que os membros da
Abrainc "repudiam, veementemente, o trabalho em condições análogas à
escravidão".
Menin é fundador e
presidente da MRV Engenharia, a principal operadora do projeto Minha Casa,
Minha Vida. A empresa já apareceu na lista suja quatro vezes e teve seu nome
retirado mediante liminares. Em 2013, a MRV teve novos contratos de
financiamento suspensos pela Caixa Econômica Federal por ter aparecido na
lista. No mesmo ano, foi condenada pelo MPT a pagar R$ 6,7 milhões por trabalho
escravo.
Em nota à BBC Brasil, a
MRV informou considerar que "as decisões do MPT não possuem carácter
condenatório" e ressaltou que a empresa "segue rigorosamente as
normas trabalhistas e condena com veemência qualquer prática que configure
trabalho análogo ao escravo".
Nos últimos cinco anos,
vem aumentando o número de casos de identificação do trabalho escravo em ações
de fiscalização na construção civil, segundo dados do Ministério do Trabalho.
Para Lyra, isso está por trás da ação da Abrainc, a primeira do tipo vinda do
setor.
"Em 2013
identificamos mais trabalhadores resgatados no meio urbano do que no rural. Com
certeza só temos a Abrainc hoje no nosso pé porque os resultados da
fiscalização no meio urbano e de construção civil apareceram" diz.
"Antes, os
pecuaristas é que nos batiam, através da Confederação Nacional de Agricultura e
Pecuária (CNA). Mas a gente se pergunta como é que a CNA tentou por duas vezes,
sem sucesso, algo que a Abrainc conseguiu em dois dias. É um setor muito
poderoso."
Fora do radar
A interrupção da
publicação da lista suja em dezembro abriu espaço, na prática, para que
fazendeiros e empresários driblassem as sanções do mercado e saíssem do radar
da sociedade civil nos últimos três meses, de acordo com Mércia Silva, do
Instituto Pacto Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo (Inpacto).
"Sabemos que
algumas empresas e fazendeiros que estavam na lista suja já bateram na porta de
empresas compradoras de seus produtos quando saiu a liminar, dizendo: 'a lista
está suspensa, agora você pode comprar de mim'."
"As companhias
interessadas em não promover o trabalho escravo estão atentas, mas há outras
que não estão interessadas nisso, porque agora podem comprar mais barato sem se
importar com essas questões", disse à BBC Brasil.
O BNDES e a Caixa
Econômica Federal orientaram seus funcionários a deixar de usar essa informação
na análise dos pedidos de empréstimos e concessão de crédito, já que a lista
não estava mais disponível.
Questionado pela BBC
Brasil sobre a decisão, o BNDES afirmou que "não deixou de vetar a
concessão de crédito a indivíduos ou empresas que submetem trabalhadores a
condições análogas ao trabalho escravo" e que mantém em todos os seus
contratos uma cláusula social, que permite punir a prática com o vencimento
antecipado do contrato.
Empresas do setor têxtil
e da construção civil chegaram a conseguiram liminares para terem nomes
excluídos da 'lista suja'
O Banco afirmou ainda
que trabalha com outras instituições para "tornar mais ágil a notificação
de ocorrências ao Banco, para impedir que as empresas recebam o crédito e para
permitir a aplicação de sanções, caso o crédito tenha sido concedido".
A Caixa Econômica
Federal afirmou que, uma vez que a portaria interministerial que estabelecia a
lista suja foi suspensa, não seria possível utilizá-la para impedir a
contratação de qualquer produto. Questionada sobre que outros meios utilizava
para obter informações a respeito das empresas e sobre que exigências fazia
para a concessão de crédito, a Caixa optou por não responder.
De acordo com Luiz
Machado, da OIT, a suspensão da lista "causou surpresa e
preocupação".
"O Brasil é uma
referência no combate ao trabalho escravo, não porque erradicou o crime, mas
porque está bem à frente de outros países em ações práticas para combatê-lo.
Isso (a suspensão da lista) sinaliza um passo na direção contrária, mas é
importante ver que o governo quer manter a lista", afirmou.
"Já ouvimos de
empresas estrangeiras de setores como café e siderurgia que elas compram
tranquilamente do Brasil porque sabem que há uma lista suja e que seus
fornecedores fazem controle usando essa relação. Sem ela, algumas dessas
empresas podem rever suas políticas de relação com o país."
Lista de empregadores
flagrados usando trabalho análogo à escravidão permite controlar cadeias
produtivas na economia brasileira, segundo ONGs
A lista de empregadores
flagrados utilizando trabalho análogo ao escravo no Brasil – suspensa em
dezembro de 2014 pelo STF - que deverá ser reativada nesta semana pelo
Ministério do Trabalho e Emprego (MTE) – é considerada pela ONU um modelo de
combate à escravidão contemporânea em todo o mundo.
A medida, no entanto,
causa controvérsia no Brasil, especialmente entre os empregadores que tem seus
nomes divulgados na relação.
A partir da chamada
"lista suja", empresas e bancos públicos que assinaram o Pacto
Nacional pela Erradicação do Trabalho Escravo podem negar crédito, empréstimos
e contratos a fazendeiros e empresários que usam trabalho análogo ao escravo.
Ao suspender a lista, o
ministro Ricardo Lewandowski decidiu a favor de um pedido da Associação
Brasileira de Incorporadoras Imobiliárias (Abrainc), organização que reúne
algumas das principais empreiteiras do país, como MRV Engenharia, Moura Dubeux
e Odebrecht.
Entenda os principais
pontos da polêmica:
O que é a 'lista suja'
do trabalho escravo?
A lista foi criada em
2003 para divulgar os nomes das empresas que foram autuadas pelo uso do
trabalho análogo ao escravo a partir da fiscalização do Ministério do Trabalho,
e que tiveram estas autuações confirmadas após um processo administrativo.
Normalmente, auditores
fiscais do trabalho realizam ações periódicas em que conferem as condições de
trabalhadores em fazendas, obras e fábricas. Ao encontrarem irregularidades que
afrontam a Consolidação das Leis do Trabalho (CLT) – mas também outros acordos
e convenções sobre o trabalho que o Brasil assinou –, os fiscais autuam os
empregadores.
O que ocorre em seguida
é um processo administrativo trabalhista, em que a empresa tem a oportunidade
de defender-se em primeira e segunda instância. Caso o Ministério do Trabalho
confirme a infração – e a caracterize como condição análoga ao trabalho escravo
– determina-se que a empresa pague multas, assuma compromissos e tenha seu nome
colocado na lista.
"A lista é
simplesmente um instrumento de transparência da ação do Estado, que tem a
obrigação de fiscalizar e garantir direitos trabalhistas", afirma Mércia
Silva, do Instituto Pacto Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo
(Inpacto)
A relação é publicada no
site do Ministério do Trabalho, que também comunica as infrações à Polícia
Federal, ao Ministério Público Federal, à Advocacia Geral da União e ao
Ministério Público do Trabalho, que podem entrar com outras ações e processos.
O Código Penal Brasileiro determina que reduzir alguém à condição análoga a de
escravo é crime.
"O violador está
sujeito a ação penal, ação administrativa trabalhista e até ação civil, pelos
funcionários", explica o subprocurador-geral da República Oswaldo José
Barbosa Silva.
Como essa informação é
utilizada na prática?
Desde de sua criação, a
relação de empresas autuadas por trabalho escravo vem sendo utilizada por
bancos públicos, bancos privados, empresas nacionais e internacionais que
operam no Brasil e até mesmo importadoras de produtos brasileiros no exterior
para controlar o compromisso de grandes empresas e fornecedores com suas
cadeias produtivas.
"A lista suja
combate o trabalho escravo, mas, mais do que isso, é um instrumento de
gerenciamento de risco para a atividade econômica brasileira, porque ninguém
quer se associar a empresas que usam trabalho análogo à escravidão", disse
à BBC Brasil o cientista político Leonardo Sakamoto, da ONG Repórter Brasil.
"Não é uma questão
de 'bondade' do mercado. A empresa que foi flagrada com trabalho escravo pode
estar sofrendo um processo grande e pode nem ter dinheiro no futuro para quitar
empréstimos que venha a tomar, se for condenada a pagar milhões. Era necessário
que o mercado brasileiro tivesse um instrumento para garantir esse
controle", afirma.
A partir da relação de
nomes, ONGs e institutos como o Repórter Brasil e a Organização Internacional
do Trabalho conseguem mapear cadeias produtivas e de abastecimento que têm
origem no trabalho escravo.
Se produtores de carvão
aparecem na lista, por exemplo, as grandes empresas automobilísticas e de
eletrodomésticos podem garantir que o aço que consomem (o aço é produzido com
ferro gusa, liga de ferro e carvão) não utiliza o produto daqueles
fornecedores.
Brasil tem mais de 150
mil trabalhadores em condição análoga à escravidão
A divulgação da relação
de nomes não obriga nenhuma instituição a agir para aplicar punições ou negar
contratos e empréstimos a quem aparece na lista. No entanto, o fortalecimento
do Pacto Nacional para a Erradicação do Trabalho Escravo, a partir de 2005, fez
com que as principais empresas e bancos do país aderissem a este compromisso.
Para Juana Kweitel,
diretora de programas da ONG de direitos humanos Conectas, a relação tem um
peso importante para o Brasil no cenário mundial.
"A lista sempre foi
vista como uma ferramenta eficaz e criativa desenvolvida, de maneira pioneira,
no Brasil. Era vista como um exemplo a ser copiado", disse. "Além do
mais, era muito mencionada em relatórios da ONU como uma política modelo."
A suspensão da lista, na
visão da Conectas, foi uma "uma ação concertada, pela porta dos fundos,
por segmentos da indústria frequentemente incluídos na lista suja para obterem
uma alívio temporário."
Luiz Machado,
coordenador do programa de combate ao trabalho escravo da Organização
Internacional do Trabalho (OIT) no Brasil, afirma que a importância da relação
de nomes é exercer pressão sobre o mercado. "Ela é considerada um
instrumento muito poderoso, que não encontramos em nenhum outro lugar no
mundo."
"Ouvimos dos
próprios empregadores que eles se preocupam mais com o fato de ter o nome na
lista do que com as multas. As multas são irrisórias, principalmente as
trabalhistas. E a condenação penal, que deveria estar sendo posta em prática e
reforçada, não tem sido aplicada devidamente", disse à BBC Brasil.
Como a nova lista será
diferente da primeira?
A nova lista terá cerca
de 400 nomes de empregadores flagrados por trabalho escravo, que tiveram suas
autuações confirmadas definitivamente entre dezembro de 2012 e dezembro de
2014.
Os nomes permanecerão na
relação por um período máximo de dois anos e a lista poderá ser atualizada a
qualquer momento. Até então, as atualizações aconteciam em junho e em dezembro,
exceto quando era preciso obedecer a decisões judiciais que determinavam a
ocultação de nomes.
"A portaria nova
reduz o cadastro, porque havia muitos nomes que não pagavam as multas e poluíam
a lista. Tínhamos casos de nomes que estavam há 11 anos no cadastro. Agora,
entendemos que a multa vai ficar a cargo da Procuradoria-geral da Fazenda
Nacional e a gente vai colocar como limite para que um nome esteja na lista
dois anos", afirmou Alexandre Lyra, do MTE.
Segundo Lyra, empresas
da construção civil e do setor têxtil já haviam conseguido liminares para a
retirada de seus nomes da lista em outras ocasiões. Esta, no entanto, foi a
primeira vez que um grupo conseguiu suspender a publicação.
Fonte: Por Camilla Costa, BBC Brasil em São
Paulo. Foto: ABr