Com meio século de vida,
Brasília vive os dilemas das metrópoles centenárias. A cidade planejada não
conseguiu implantar um serviço de coleta e triagem de lixo, garantir tratamento
de esgoto para 100% da população, o transporte público é de péssima qualidade e
parece ter a predileção de optar pelas tecnologias ultrapassadas. A Educação e
a Saúde públicas, outrora modelos referenciais de qualidade, estão sucateados e
a especulação imobiliária faz a cidade crescer desordenadamente para cima e
para os lados. Brasília, a cidade que não tinha a missão de ser uma metrópole,
segundo a visão de seu próprio idealizador, fica, a cada dia, mais
descaracterizada e mais semelhante a qualquer outra cidade do país, refém dos
interesses da ganância de uns e dos desacertos da classe política que dita os
rumos não só de Brasília, mas de todo o País.
Talvez,
o último governador do Distrito Federal que
tenha tido uma verdadeira
preocupação com a preservação da Capital Federal tenha sido José Aparecido. Ele
conseguiu que Brasília fosse tombada como patrimônio universal da humanidade
pela Unesco e assim tentar aplacar a sanha de alguns que não tem preocupação
com o que ela representa nem com a qualidade de vida dos que nela moram. ...
Foi
na administração Aparecido, entre 1985 e 1987 que Lúcio Costa esteve em
Brasília para fazer, quem sabe, uma última reflexão sobre os rumos de sua
criação. Elaborou o projeto Brasília revisitada, que de alguma forma buscava
garantir os ideários da cidade sonhada por Juscelino Kubitscheck e, ao mesmo
tempo abrir um pouco de espaço para o seu crescimento.
Um
quarto de século depois, a cidade não parece mais a mesma e as ameaças de uma
descaracterização maior – tais como a mudanças de gabaritos nos Setores
Hoteleiros ou a mudança de destinação de uso da quadra 901 Norte – se mostram
cada vez mais fortes e agressivas. No entorno da cidade, os espigões já tomam
conta da linha do horizonte, chegando, em alguns casos a 30 andares. A
verticalização das cidades-satélites impacta todo o planejamento feito para
Brasília, em especial a qualidade dos serviços que devem ser ofertados pelo
poder público. A cidade vive a opressão da força das empreiteiras, das
construtoras e das imobiliárias.
Lúcio
Costa e Oscar Niemeyer já não estão mais aí para zelarem por sua criação.
Setores da sociedade civil, tais como os movimentos Reaja Brasília e Urbanistas
por Brasília, tentam se contrapor a dilapidação da Capital Federal. É uma luta
inconstante e desigual.
Foi
neste contexto que fui procurar alguém que viveu muito perto dos dois
idealizadores de Brasília e também da implantação deste que foi um dos maiores
empreendimentos do Brasil no século XX: Maria Elisa Costa. Demonstrando o DNA
familiar, ela é hoje uma referência não apenas como arquiteta e urbanista, mas também
na área de patrimônio histórico.
Em
uma entrevista exclusiva ao blog Brasília, por Chico Sant’Anna, Maria Elisa revela que o Noroeste,
embora previsto por seu pai, foi completamente distorcido pelo GDF. Para ela,
as maiores ameaças se concretizam rapidamente em agressões, como por exemplo,
aumentando desmesuradamente os gabaritos em localidades fora do Plano Piloto,
mas perto demais da área de entorno do bem tombado.
Maria
Elisa considera que a expansão urbana de Brasília está acontece ao sabor dos
interesses do momento. O planejamento urbano do Distrito Federal – adverte ela
– deveria considerar que se trata da CAPITAL
DO PAÍS !!! (o grifo e as
exclamações são dela mesmo) “Preservar
o Plano Piloto não é uma “frescura” cultural!”
No final da década de 1980, Lúcio Costa elaborou o
projeto “Brasília Revisitada” que definia a forma do crescimento urbano da
Capital Federal.
A
filha de Lúcio Costa considera uma “aberração” a contratação pelo governo de
Agnelo Queiroz da empresa Jurong, de Cingapura,para definir os rumos da
expansão urbana do Distrito Federal uma aberração.
Embora
não admita estar triste com a situação da Capital, ela considera que Brasília
está sendo maltratada e só não está mais descaracterizada em função da força da
proposta urbanística original e pela ação de resistência dos brasilienses que
defendem a cidade.
“Meu
estado de espírito em relação aos rumos de Brasília é … acreditar no que vejo,
ou seja, uma coisa que há 50 anos não passava de uma idéia, é, de fato, hoje –
e para sempre – a Capital do país … Como eu acredito completamente no Brasil,
não posso deixar de acreditar que Brasília vai segurar a barra…”
Confira
abaixo a íntegra da entrevista de Maria Elisa Costa, filha de Lúcio Costa,
concedida a Chico Sant’Anna.
Blog
– Na década de 80, durante o governo de José Aparecido em Brasília, seu pai
visitou a cidade e apontou áreas para onde ela poderia crescer e definiu como.
O trabalho ficou conhecido como Brasília Revisitada. Em sua opinião, desde
então, as idéias de seu pai foram bem aplicadas? Onde houve acerto? Onde houve
Desacerto?
Maria
Elisa Costa – Brasília
Revisitadacontem uma série de sugestões. O “Sudoeste’” foi implantado logo, e
obedece ao proposto, com uma lamentável exceção: As faixas de 20 circundando as
superquadras existem, mas ali nunca foi plantada uma árvore!
Já
para o “Noroeste”, o projeto – recente – foi feito por conta própria, não
respeitou a proposta (inclusive indicada graficamente) em Brasília Revisitada. (A título de
exemplo: Superquadra NÃO É lugar de passagem, por isso tem entrada única para
veículos; as “superquadras” do Noroeste não são superquadras, tem entrada e
saída….) As demais propostas, acho que envelheceram, diante do rumo tomado pela
expansão urbana do DF.
Blog
– Seu pai, se pudesse fazer hoje uma nova “revisita” a Brasília, como você crê
que ele reagiria?
Maria
Elisa Costa – Seguramente ficaria emocionado ao
entrar no Eixão, vindo do aeroporto… passando pelo burburinho da Rodoviária e
descendo à Esplanada até à Praça dos Três Poderes… e de lá olhando o por
do sol atrás da Torre de TV! No mais, não me arrisco!
Blog
– Em sua opinião, Brasília está sendo bem tratada? Há risco de se perder a
originalidade do que foi este projeto urbanístico?
Maria
Elisa Costa – Nos últimos tempos, não tenho achado
Brasília bem tratada… Falta cuidado cotidiano, e se a originalidade do projeto não
se perde, é porque a proposta é forte, e ainda porque os moradores de Brasília
gostam da cidade.
O
Brasil como um todo – e os brasilienses em particular – precisam dar valor à
sua cidade, como nós, cariocas, damos ao Rio! Brasília é capital do BRASIL, e não de um mero
estado da Federação de nome Distrito Federal.
Blog
– Há por parte do atual governo rotinas de consultas aos técnicos herdeiros e
responsáveis pela preservação do projeto de Lúcio Costa?
Maria
Elisa Costa – Isso nunca houve (e nunca me passou
pela cabeça, aliás!). A rigor, a preservação do Patrimônio Cultural Brasileiro
(Brasília inclusive) incumbe ao IPHAN, não é coisa de família…
Blog
– Em sua opinião, onde residem as maiores agressões ao projeto de Brasília, ou
onde estão as mais graves ameaças ao projeto?
Maria
Elisa Costa – Em Brasília
Revisitada Lucio Costa faz uma
afirmação fundamental: “A Brasília não interessa ser uma grande metrópole.”
Ou
seja, as ameaças se concretizam rapidamente em agressões, como por exemplo,
aumentando desmesuradamente gabaritos perto demais da área de entorno do bem
tombado (no Guará, por exemplo, prática aliás inaugurada pelo partido urbano
ostensivamente oposto a Brasília do projeto de Águas Claras…).E não se pensa
seriamente em implantar atividades geradoras de emprego além de
Taguatinga/Ceilândia, etc.)
Blog
– O segmento empresarial imobiliário brasiliense, a seu ver, tem algum
compromisso em preservar a cidade, ou eles são os grandes vilões?
Maria
Elisa Costa – A grande vilã do planeta, em todas as
áreas, se chama GANÂNCIA. Seja no setor imobiliário ou em qualquer outro –
depende das pessoas, a doença é global…
Blog
– A classe política de Brasília, em especial a que hoje se situa no Palácio do
Buriti e na Câmara Legislativa, tem a clareza suficiente para entender a
importância cultural de Brasília. Ela é efetivamente compromissada com o
projeto?
Maria
Elisa Costa – Sou do tempo em que a capital era o
Rio de Janeiro, a presidência da República nomeava um
prefeito para cuidar da cidade, e havia uma câmara de vereadores eleita, para
defender os interesses dos moradores. Se o prefeito não desse conta do serviço,
trocava-se o Prefeito….
Ou
seja, quem tomava conta do Distrito Federal tinha uma cabeça prioritariamenteadministrativa.
Já com essa idéia insólita de considerar o DF um Estado (de mentira, porque ele
não se sustenta, quem paga as contas é a mamãe-federal), com governador eleito,
a meu ver, não funciona – cabeça de governador é prioritariamente política…
Blog
– Áreas como a quadra 901 Norte, hoje não ocupadas, e os Setores Hoteleiros
Norte e Sul – onde coexistem prédios de pequeno porte e outros de mais de 10
andares, poderão ter seus projetos modificados para abrigarem hotéis de 10 a 14 andares? Como a
senhora analisa este fato?
Maria
Elisa Costa – Os setores hoteleiros originais, sim,
inclusive com introdução de comércio de gabarito baixo…
Já
a 901 Norte não, ela não faz parte do centro urbano original, não deve admitir,
em nenhuma hipótese, gabarito superior a cerca de 15 metros… – já quanto aos
usos, e mesmo taxa de ocupação, flexibilização é possível – questão de bom
senso…. E o Setor de Autarquias Norte, que admite gabaritos altos? Está
desocupado até hoje… mistérios de Brasília.
Blog
– Além do Plano Piloto, tombado, as cidades satélites estão sofrendo com
grandes transformações urbanísticas. Há prédios em Águas Claras que chegam a 30
andares. Cidades satélites destinadas a camadas sociais menos favorecidas, como
Gama e Samambaia, já possuem espigões de 20 andares de altura. De que forma
esta transformação ajuda a preservar ou impacta na preservação do Plano Piloto.
Maria
Elisa Costa – A expansão urbana de Brasília acontece
como em qualquer cidade brasileira, ao sabor dos interesses do momento. Hoje, é
a mania de gabaritos altos, mesmo quando não há nenhuma pressão urbana que o
justifique – acontece em todas as cidades de porte médio – lamentável! (a meu
ver, mais um produto da GANÂNCIA…)
O
planejamento urbano do DF deveria lembrar-se que se trata da CAPITAL DO PAÍS !!! Preservar o Plano Piloto não é uma
“frescura” cultural! É respeitar um momento extraordinário da nossa história em
que a vontade política (JK), a capacidade realizadora (Dr. Israel) e o talento
(Lucio e Oscar) se uniram a favor do Brasil!
Blog
– Na nova Lei de Uso e Ocupação do Solo – Luos, enviada pelo Governo do
Distrito Federal à Câmara Legislativa, setores, como os das Mansões Park Way,
originalmente previstas como “suburbanas” e destinadas ao cinturão verde da
Capital estão tendo sua destinação alterada para receber, inclusive,
empreendimentos comerciais e as áreas verdes ali localizadas serão passiveis de
edificação. Que impacto isso pode trazer à cidade?
Maria
Elisa Costa – Tenho acompanhado a reação contrária
dos moradores, mas não conheço a proposta. E sempre tenho tendência a
desconfiar de improvisos, sinto falta de uma orientação global inteligente em
relação ao conjunto do DF.
Blog
– O GDF contratou junto a uma empresa de Cingapura, a Jurong, a elaboração de
projetos urbanísticos em cinco áreas do Distrito Federal – como por exemplo, o
Núcleo Rural do Tororó – todas elas exploradas atualmente por atividades rurais,
ou mesmo sem qualquer uso do solo. A senhora crê na possibilidade de que a
ocupação do solo de forma progressiva, como vem ocorrendo no DF, possa provocar
problemas de desabastecimento de água potável. Que impactos poderemos ter
quanto a esgoto e impermeabilização do solo?
Maria
Elisa Costa – Acho que a contratação de uma firma
particular, ainda mais de um lugar que não tem nada a ver com a realidade
brasileira, para definir os
rumosda expansão urbana do Distrito Federal uma aberração.
A
responsabilidade de planejar o rumo a seguir, a meu ver, é atribuição do poder
publico, através de uma secretaria de planejamento competente, capaz de
definir, orientar e fiscalizar a execução dos serviços que venha a
terceirizar.
Blog
– Como a Senhora analisa a contratação de uma empresa de planejamento
urbanístico estrangeira para traçar os projetos do crescimento urbano do DF,
sem a realização de um concurso técnico ou mesmo uma licitação pública?
Maria
Elisa Costa – Você acharia admissível que a
Prefeitura de Paris contratasse uma firma de um país longínquo, sem ter nenhuma
intimidade com seus problemas, para planejar a expansão urbana da chamada
“Région Parisienne”? Duvido !
Blog
– Como técnica, que juízo de valor a senhora faz da empresa Jurong?
Maria
Elisa Costa – Nunca ouvi falar da empresa Jurong.
Devolvo a pergunta: de onde surgiu esse lance do GDF com a Empresa Jurong?
A
proposta da Jurong tem em vista estimular a expansão urbana do Distrito Federal.
Só que, como dizia Lucio Costa, “a Brasília não interessa ser grande
metrópole”… Resta saber a quem interessa.
Blog
– Passados 52 anos, a senhora diria que a população de Brasília está
distanciada da utopia que foi o projeto da cidade e que não aporta a ele o
mesmo carinho e sentimento?
Maria
Elisa Costa – O projeto de Brasília não foi uma utopia, foi uma
extraordinária realização de carne e osso da Nação brasileira. Acho que a
população, agora já nascida na cidade em sua maioria, tem um enorme carinho
pela cidade.
Blog
– Se lhe fosse pedido para pensar o futuro urbanístico do DF, que valores
norteariam o seu raciocínio? A senhora optaria em adensar áreas já existentes,
com verticalização dos imóveis, ou manteria os gabaritos atuais e abriria novos
espaços urbanos? Brasília tem um limite de crescimento populacional? Ela é uma
cidade já consolidada ou precisa sempre está crescendo?
Maria
Elisa Costa – Procuraria, antes de qualquer coisa,
mobilizar todos os meios possíveis par criar emprego fora do Plano Piloto. Certamente, na
medida do possível, não estimularia o crescimento da cidade… E teria que
estudar muito bem a realidade atual, para saber como lidar com a expansão
urbana.
Desde
logo, fica claro que há duas situações urbanas diferentes justapostas: o que eu
chamaria de “Grande Brasília” cujo núcleo principal é Taguatinga, e a área de
Brasília propriamente dita, ou seja, a área tombada e seu entorno, delimitado
pelo divisor de águas da bacia do Paranoá.
Na
realidade, o que é bom como legislação para uma, não serve para a outra! Daí,
ter me ocorrido há algum tempo que o DF deveria ter dois Prefeitos, em lugar de
um Governador: uma prefeitura para cuidar da “Grande Brasília”, com sede em
Taguatinga, prefeito eleito e câmara de vereadores, como nas demais cidades
brasileiras; e a outra para tomar conta de Brasília propriamente dita,
cidade-capital DO PAÍS, com prefeito nomeado pela Presidência da República e
representação popular através das Associações de Moradores – como se fosse um
“Território Federal” dentro do Distrito Federal.
De
qualquer forma, deve ficar claro: na área de Brasília-Plano Piloto e seu
entorno quem manda é a preservação; gabaritos altos só mesmo bem afastados dos
limites da área de proteção. E para a grande Brasília, um planejamento urbano
tradicional, como se faz em todas as cidades…
É
preciso acrescentar que, seja no caso de governador ou de prefeitos, por se
tratar, na realidade, não de um estado, mas da CAPITAL DA REPÚBLICA, toda e
qualquer decisão relativa a uso e ocupação do solo dentro da área do Distrito
Federal só deveria ser implantada depois de exame isento de suas implicações, por um órgão
técnico diretamente ligado à Presidência da República.
Fonte:
Brasília por Chico Sant'Anna - 13/01/2013


