Depois dos profissionais da saúde,
servidores de outras categorias decidem iniciar uma greve no DF
![]() |
Naara Guedes e sua mãe, Francisca: ela depende de exames para um transplante... |
Na
fila para o transplante de rim e de pâncreas, Naara Guedes precisou de dois
ônibus e uma hora para se deslocar do Riacho Fundo, onde mora, até o
ambulatório do Hospital Regional da Asa Norte, em Brasília, onde pretendia
agendar dois exames preparatórios para a cirurgia, a ser realizada em São
Paulo. Surpreendeu-se, porém, com a greve dos servidores da saúde do Distrito
Federal, que a partir da quinta-feira 8 passam a atender apenas casos de
urgência e emergência.
“Espero
que entendam ser esta a minha situação”, resigna-se a jovem portadora de doença
renal. “Nos hospitais, falta tudo. Quando ela faz hemodiálise em Taguatinga,
precisamos levar até gaze e esparadrapo”, critica a mãe Francisca Macedo,
companheira nas peregrinações pela rede pública.
Ao
todo, 37 categorias de servidores prometem cruzar os braços após o governador
Rodrigo Rollemberg, do PSB, anunciar que não pagará benefícios e reajustes
salariais concedidos em 2012, na gestão do petista Agnelo Queiroz.
À
época, chegou-se a um acordo de reajustes escalonados até 2015, validados por
leis aprovadas pela Câmara Legislativa. As últimas parcelas deveriam ser
quitadas em setembro de 2015, mas o governo, em grave crise financeira, alega
só ter condições de honrar os compromissos a partir do próximo ano, e sem o
pagamento dos retroativos.
Na
quarta-feira 7, os representantes de sindicatos decidiram abandonar o salão
nobre do Palácio do Buriti enquanto o secretário de Relações Institucionais,
Marcos Dantas, tentava esclarecer as razões da moratória. “O governador não
compareceu ao encontro e seus representantes só repetiam a mesma ladainha de
que não havia dinheiro no caixa.
Hospital
A
situação nos hospitais é caótica
Chegaram
a mencionar que a Grécia teve de cortar o salário dos servidores em 30% e que
talvez fosse necessário demitir funcionários. Entendemos isso como uma ameaça,
por isso abandonamos a reunião”, afirma Guttemberg Fialho, presidente do
Sindicato dos Médicos. A categoria está com os pagamentos de horas extras
atrasadas há três meses e teria direito, por lei, a um reajuste de 5% a partir
de setembro.
A
paralisação dos servidores promete transformar a vida do brasiliense num
verdadeiro caos. Nas delegacias, não haverá atendimento administrativo. Os
professores confirmam a paralisação a partir de 15 de outubro, e as escolas
públicas
podem ter as aulas suspensas. A obtenção de documentos e alvarás
promete ficar mais morosa com a paralisação de servidores nas administrações
regionais e nos postos de atendimento do Na Hora. Mas o calcanhar de aquiles,
não resta dúvidas, é a saúde pública, que há tempos padece com o sucateamento
dos hospitais, a falta de insumos e medicamentos, além de um crônico déficit de
profissionais.
As
farmácias hospitalares estão com os estoques zerados de 61 remédios. Por falta
de insulina, cerca de 4 mil diabéticos estão com o tratamento prejudicado. Dos
13 tomógrafos existentes na rede, quatro estão quebrados, enquanto quase 9 mil
pacientes aguardam na fila para o exame. A dívida com as empresas responsáveis
pelo reparo dos aparelhos ultrapassa a cifra de 2,4 milhões de reais.
Equipamento-quebrado
A
falta de manutenção de equipamentos compromete os remédios
Num
dos laboratórios do Hospital de Base, um equipamento da marca Architect
i2000SR, capaz de realizar 200 testes de imunologia e de hormônios por hora,
está desligado, com a manutenção vencida desde junho de 2014, mostra um
servidor indignado com a situação de penúria. Cerca de 20 exames de diagnóstico
não podem ser realizados no local devido à ausência de reagentes, como o teste
de PSA, usado para detecção do câncer de próstata.
Em
outro laboratório, dedicado a exames de emergência, uma servidora mostrou a
geladeira completamente desabastecida de reagentes. Na prática, o Hospital de
Base, referência no tratamento de alta complexidade, estava sem condições de
realizar testes de enzimas cardíacas, como Troponina e CK Massa, para detectar
infartos.
“Para
não deixar os pacientes sem assistência, a gente passa a mão no telefone e
tenta encontrar o que falta em outras unidades da rede. Aí ligamos para o
Hospital Regional de Brazilândia e perguntamos ‘vocês têm teste rápido de HIV?’
Se dizem que sim, logo pedem algo em troca, um kit de dengue, algum reagente em
falta por lá. Todos estão na mesma situação”, explica a funcionária, que pediu
para não ter a identidade revelada.
No
Hospital Materno Infantil de Brasília, servidores relatam atrasos em repasses a
empresas terceirizadas que cuidam da alimentação e da limpeza local, o que
costuma acarretar em interrupção nos serviços. Pacientes do Hospital Regional
do Paranoá, internados em regime domiciliar, também sofreram nos últimos meses
com interrupções no acesso à alimentação enteral e a fraldas.
De
acordo com Marli Rodrigues, presidente do SindiSaúde do Distrito Federal, até
mesmo os aventais descartáveis usados no manuseio de pacientes na UTI ou em
áreas de isolamento têm sido reaproveitados. “Infelizmente, muitos de nós
lançam mão desse tipo de improviso para não interromper o atendimento. Mas é
uma coisa arriscada, fora do protocolo, pois expõe tanto os pacientes quanto os
profissionais ao risco de contaminação e infecção.”
O
sindicato reivindica o cumprimento de duas leis, uma aprovada em 2012 e a outra
no ano seguinte, que tratam a incorporação de uma gratificação aos vencimentos
dos servidores e da equiparação da jornada de 20 horas a todos os profissionais
da área, além de criticar a transferência de alguns serviços de saúde a
organizações privadas. “Parece haver um intencional processo de sucateamento da
rede pública, que visa à terceirização dos serviços”, diz Rodrigues. Pelos
cálculos do SindSaúde, há um déficit de 10 mil profissionais na rede pública.
Protesto
Protesto
em frente à sede do governo distrital na quinta 8
No
caso dos médicos, o déficit é de 5.052 profissionais, segundo recente auditoria
da Controladoria-Geral do Distrito Federal. Das 10 mil vagas existentes em
janeiro de 2015, somente 4.938 estavam ocupadas. “Há médicos que acumulam até
96 horas de trabalho, mais que o dobro do permitido pela CLT, só para não haver
desfalque nos plantões”, comenta Fialho. “Com os atrasos, muita gente desiste
de estender a jornada. No vencimento deste mês, foram pagas as horas extras de
julho.”
A
crescente insatisfação do funcionalismo é um desafio a mais para Rollemberg,
herdeiro de uma dívida de 3,8 bilhões de reais deixada pelo antecessor, Agnelo
Queiroz. “Esta é a maior crise financeira da história do Distrito Federal”,
afirmou a CartaCapital em janeiro, logo após assumir o Palácio do Buriti.
Agora,
o governador se diz de mãos atadas para cumprir as leis que determinam
reajustes aos servidores, uma vez que os gastos com pagamentos de salários
atingiram 51% da receita corrente líquida no segundo quadrimestre, de maio a
agosto, 2 pontos percentuais acima do teto estipulado pela Lei de
Responsabilidade Fiscal. Qualquer reajuste, costuma enfatizar, depende do
aumento da arrecadação. Procurado pela revista, Fábio Gondim, secretário de
Saúde, não atendeu ao pedido de entrevista.
Na
terça-feira 6, o governo conseguiu aprovar um pacote de aumento de tributos,
que deve ampliar as receitas em 242 milhões de reais em 2016. Os deputados
distritais rejeitaram, porém, as propostas de reajuste no IPTU, na Contribuição
sobre Iluminação Pública e na Taxa de Limpeza, o que reforçaria o orçamento do
próximo ano em 166 milhões.
Os
servidores da saúde refutam o argumento de que não há recursos para o
cumprimento das leis de 2012 que estabelecem reajustes e benefícios.
“Recentemente, o governo tomou um empréstimo de 1,5 bilhão de reais do Iprev,
valor que corresponde a 75% do superávit desse fundo, destinado à aposentaria
dos funcionários da saúde. Se incluir esse valor na conta, estamos longe do
limite da Lei de Responsabilidade Fiscal”, diz Rodrigues. A batalha, tudo
indica, deve terminar nos tribunais.
*Reportagem
publicada originalmente na edição 871 de Carta Capital, com o título
"Brasília às moscas"
Fonte:
Por Rodrigo Martins-Carta Capital / blog do Edson Sombra