Lula voltou a
falar do escândalo do mensalão: "Foi um golpe que tentaram dar neste
país." Um dia. Carlinhos Cachoeira também denunciará a conspiração contra
ele e o Brasil naquele triste ano de 2012.
PC Farias e Collor só não viraram vítimas também porque o povo foi às
ruas escorraçá-los. Mas esses tempos febris já se foram. Hoje PC está morto e
Marcos Valério está muito vivo. O operador do duto entre os cofres públicos e o partido governante tem até moral para peitar o relator do mensalão no Supremo. Se Valério pode dizer que o ministro Joaquim Barbosa não tem autoridade para julgá-lo, e se Lula pode afirmar que o mensalão não existiu, Carlinhos Cachoeira tem todo o direito de se achar inocente. ...
Marcos Valério está muito vivo. O operador do duto entre os cofres públicos e o partido governante tem até moral para peitar o relator do mensalão no Supremo. Se Valério pode dizer que o ministro Joaquim Barbosa não tem autoridade para julgá-lo, e se Lula pode afirmar que o mensalão não existiu, Carlinhos Cachoeira tem todo o direito de se achar inocente. ...
Se depender da opinião pública, o bicheiro e seus clientes palacianos
podem ficar tranquilos. O Brasil deixa passar tudo. O que aconteceu há 20 anos
no impeachment foi uma anomalia. Perto do valerioduto, o esquema PC era uma
traquinagem colegial. Mas em 1992 havia o mau humor geral com a inflação
galopante. E a centelha da minissérie de Gilberto Braga. "Anos
rebeldes", que empurrou a estudantada às ruas para reviver 1968. E com
multidão nas ruas, como se sabe, tudo funciona: o Parlamento faz hora extra, os
inquiridores ficam espertos, os procuradores ficam corajosos, os juízes ficam
velozes, as entidades de classe ficam patrióticas e as instituições pegam no
tranco.
Collor sabe disso e não se conforma. Por que logo na vez dele? Chega a
ser comovente ver o presidente deposto tentando purgar a CPI do PC na CPI do
Cachoeira, ameaçando a imprensa e o Ministério Público - traumas antigos agora
de mãos dadas com o PT. Cachoeira agradece a bravura do senador colérico, mas
não precisará dela. O Brasil mudou. Já aceita ser roubado sem pintar a cara.
Senão, vejamos. Uma construtora se torna em menos de dez anos uma
espécie de milagre brasileiro particular. Gigantes da construção civil babam de
inveja da Delta, a empreiteira prodígio, cuja ascensão irresistível a
transforma em nada menos do que a principal executora do PAC. Esbanjando
intimidade com o poder, a Delta se torna protagonista do festival de
superfaturamentos do Dnit, no caso mais vultoso da queda sucessiva de ministros
em 2011. A
essa altura, a Controladoria Geral da União já avisara ao Palácio do Planalto
que vários contratos da empreiteira prodígio não cheiravam bem. O que
aconteceu?
Nada. A Delta permaneceu impávida como
a locomotiva da aceleração do crescimento. Se o Brasil tivesse tido um soluço
de curiosidade, teria se perguntado: de onde vêm essas costas tão quentes?
Eis que surge o Nextel indiscreto de Goiânia, ou mais precisamente
Miami, falando pelos cotovelos. E dizendo que Carlinhos Cachoeira, o
"empresário da contravenção" (assim citado na "Voz do Brasil"),
era um entroncamento de negócios no submundo da política, um agente entre o
poder público e o dinheiro sujo. E quem era a pessoa jurídica por trás das
transações de Cachoeira? Ela. a locomotiva do PAC.
"Tem que ser a nível de Brasil. Pega aí com ele aí e vai ficar
tudo no nome da Delta, tá?", ordenou o empresário da contravenção a
Cláudio Abreu, diretor da empresa. Uma devassa de verdade na conexão
Cachoeira-Delta abriria o atlas fisiológico do Brasil - a sangria do Estado nas
boquinhas (bocarras) políticas. De onde vinha a influência do bicheiro no Dnit?
O que isso tem a ver com a hegemonia da Delta na farra dos transportes? Quem
eram os padrinhos governamentais dessa quadrilha?
O Brasil não faz questão de saber. Está tranquilo, assistindo de banda
pela TV ao silêncio patético de Cachoeira na CPI, diante de falsos indignados.
Ou esperando que o Nextel do bicheiro, com seus vazamentos seletivos, tenha a
bondade de entregar os nomes e os preços dos parceiros oficiais.
A cordialidade brasileira com os suspeitos é emocionante: a CPI
anunciou placidamente que não ia investigar Fernando Cavendish - a maior
caixa-preta do país - e não se ouviu um pio do respeitável público. "Não
há indícios para a quebra dos sigilos do Cavendish", declarou desinibido o
relator da CPI, deputado Odair Cunha (PT-MG). O dono da Delta deve estar
adorando essa era das redes sociais, com seus manifestantes etéreos que
respeitam o ir e vir (de helicóptero) dos empresários da contravenção.
Desobedecendo às ordens de Collor, a imprensa divulgou remessas da sede
da Delta para empresas de fachada de Cachoeira, o que deverá forçar a quebra de
sigilos da construtora. Mas a noiva do bicheiro continua sorrindo. Ela confia
em Carlinhos. que confia em Fernando, que confia na CPI, que confia no Brasil.
"Não se preocupe: você é nosso e nós somos teu", escreveu
Cândido Vaccarezza, homem de Lula na CPI, para o governador do Rio e compadre
de Cavendish. Família unida permanece unida. E o povo lá fora exerce seu direito
constitucional de ficar calado.
Por Guilherme Fiúza
Fonte: Jornal
O Globo - 26/05/2012