sábado, 16 de março de 2013

A força de uma escola


Ainda surpresos com o próprio sucesso, estudantes de Planaltina passam em primeiro lugar para medicina e arquitetura na UnB. Além do esforço individual, destacam o trabalho extra dos pais e o incentivo dos professores como essenciais


Os primeiros colocados Kamila Karen Gomes e Joadyson
Silva Barbosa, ambos de 17 anos: do centro educacional em Mestre
D'Armas para o ambiente acadêmico
Da periferia para a academia. Dois alunos de uma escola pública de Planaltina conquistaram o lugar mais alto no pódio entre os aprovados no Programa de Avaliação Seriada (Pas) da Universidade de Brasília (UnB). Eles superaram as barreiras invisíveis que travam tantos jovens
de baixa renda a ingressarem no ensino superior e, hoje, são exemplo para colegas, professores e comunidade.

A dupla tem em comum aprovações em outros processos seletivos de universidades públicas do país (ver Processos seletivos). Tudo leva a crer que terão carreira de sucesso na medicina e na arquitetura. Joadyson Silva Barbosa e Kamila Karen Fernandes Gomes têm, ambos, 17 anos e vieram de famílias humildes, que consideram luxo cursar uma faculdade. Os pais têm, no máximo, o ensino médio completo, mas todos, sem exceção, estão em primeiro lugar na lista de agradecimento dos garotos. ...

Kamila viu a mãe aumentar a jornada de trabalho como cuidadora de crianças e ainda dobrar o número de clientes. O pai, auxiliar de serviços gerais, começou a trabalhar durante a noite. Tudo isso para dar mais condições para a menina estudar.

A mãe de Joadyson, empregada na área de limpeza da escola do filho, criou uma atividade extra: confeccionar tapetes artesanais para vender na própria instituição de ensino. O pai, motorista de caminhão, chegou a passar um ano viajando para ajudar nos cursos extras do filho.

Os estudantes também passaram em 1º lugar no vestibular convencional da UnB para os mesmos cursos: Joadyson, em medicina; e Kamila, em arquitetura. Eles se inscreveram por meio do sistema de cotas sociais, assim como no PAS, e ficaram surpresos com os resultados. Achavam que não iriam passar na primeira vez. “Imaginava que iria demorar uns 10 anos, mas, mesmo assim, não desistiria”, relata ela. “Eu também não achava que meu esforço era suficiente. Sempre pensava que tinha de melhorar”, completa o rapaz, que enfrentava madrugadas em cima dos livros.

Depois da rotina de escola, cursinho e aulas de idiomas, algumas vezes, Joadyson estudava das 23h à 1h30 e, no dia seguinte, estava de pé às 5h30 para começar tudo de novo. Pensava que o corpo não aguentaria. “Falava com os professores não estava conseguindo manter o ritmo fisicamente”, lembra. “Minha mãe me dizia para não estudar tanto, mas esse sonho me sustentava, tinha vontade de ser útil para as pessoas”, completa.

Na infância, Kamila voltou-se para o desenho e a leitura. Joadyson, por sua vez, afastava os carrinhos e os aviões para dar lugar ao estetoscópio, à maleta de médico e ao prontuários de mentirinha. “Não sei por que, mas desde novo a medicina me acompanhava. E, na 7ª série, já me preocupava com o vestibular. Pegava provas de universidades para resolver”, conta ele.

A jovem tem o sonho de projetar um edifício, mas afirma nunca ter se arriscado enquanto estudante, muito embora tenha costume de pintar quadros e fazer plantas de casas. “Ainda quero desenhar a minha própria e assim poder constituir família e dar uma boa condição de vida para ela”, argumenta a menina. O adolescente ainda não escolheu a especialização, mas pensa em atuar na área de cirurgia geral ou medicina intensiva. A maior preocupação do garoto é retribuir aos pais tudo o que fizeram por ele.

Simulados

O sucesso desses jovens talentos também é resultado, segundo eles mesmos, do empenho dos professores do Centro Educacional Pompílio Marques de Souza, localizado no bairro Mestre D’ Armas, em Planaltina. A metodologia motivacional aplicada também é descrita como ingrediente importante, assim como mostrou o Correio no último 18 de janeiro, quando a história de outros colegas de Kamila e Joadyson foram contadas (ver Memória e fac-símile).

A professora de língua portuguesa e de inglês, Conceição Maria Gusardi, uma das responsáveis por apostar numa proposta inovadora conta que o resultado é fruto, primeiramente, da superação dos estudantes: “Eles tinham vontade de aprender e nós muito mais de ajudar na realização dos sonhos. Hoje, no projeto pedagógico da escola, consta a produção de texto de redação desde o sexto ano”. Segundo ela, durante as atividades em sala de aula, todo o ambiente era criado como numa prova real de vestibular. “Eles tinham tempo, número de linhas e pontuação parecida. Se escrevessem menos ou mais do que o permitido  nem corrigia a redação”, completa.

A aula de matemática não era muito diferente. O professor Luiz Gonzaga Gadelha trazia exemplos de perguntas que já caíram em provas de universidade de todo o país. “Eu pegava questões de olimpíadas de matemática, Enem e vestibulares. Além disso, tentávamos fazer os alunos interpretarem primeiro os problemas para depois resolvê-los”, exemplifica.

O diretor do Centro Educacional Pompílio Marques de Souza, Welton Rabelo da Silva, orgulha-se em ver que Joadyson e Kamila foram os primeiros alunos a se destacarem e aposta que eles vão deixar um legado na instituição. “Desde cedo, eles já se destacavam do grupo, porém acho que o incentivo de alguns professores foi um diferencial para todos”, ressalta.

Estágios

Estudante do mesmo colégio, Evaine Dias Ambrózio, 18 anos, também alcançou várias aprovações. Embora tenha passado na UnB em 2º lugar para ciências naturais, decidiu cursar ciências biológicas no Instituto Federal de Goiás, em Formosa, onde passou como primeira colocada.

Também de família pobre, a jovem conta que, desde o 1º ano, buscou fazer estágios para ajudar nas despesas do lar. A mãe é dona de casa, e o pai, motorista de ônibus. Atualmente, ela trabalha como estagiária na Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa) e sonha em se formar e fazer pós-graduação para trabalhar na área laboratorial. “Quero, com isso, comprar a minha casa, ter a minha vida, conseguir fazer viagens e, claro, passar em concurso público”, adianta.

Processo seletivos de 2012
Joadyson Barbosa

1º lugar: Universidade de Brasília (UnB) para medicina, pelo Programa de Avaliação Seriada (Pas), por meio das cotas sociais
1º lugar: Universidade de Brasília (UnB) para medicina, pelo vestibular convencional, por meio das cotas sociais
1º lugar: Escola Superior de Ciências da Saúde (Escs) para medicina, por meio das cotas para escola pública
1º lugar: Universidade Federal de Uberlândia (UFU) para odontologia, pelo Sistema de Seleção Unificada (Sisu), por meio das cotas sociais

Kamila Gomes

1º lugar: Universidade de Brasília (UnB) para arquitetura, pelo Programa de Avaliação Seriada (Pas), por meio das cotas sociais
1º lugar: Universidade de Brasília (UnB) para arquitetura, pelo vestibular convencional, por meio das cotas sociais
1º lugar: Universidade Federal do Mato Grosso do Sul (UFMS) para geografia, pelo Ssistema de Seleção Unificada (Sisu), por meio das cotas sociais

Memória

Em 18 de janeiro, o Correio contou a história de 16 alunos da escola de Planaltina que garantiram vaga em universidades federais e estaduais do Brasil. Joadyson foi um dos personagens da reportagem. Ele havia recebido a notícia de que tinha passado na Universidade Federal de Uberlândia, mas ainda aguardava o resultado da UnB. Em um dos trechos da reportagem, é dado destaque para o fato de o rapaz ter vencido um concurso de redação promovido pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ), no ano passado. Havia cerca de dois mil concorrentes. O trabalho literário tinha como tema “O papel da internet na educação”.

Por Mariana Laboissière
Fonte: Correio Braziliense - 16/03/2013