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Por Gleisson Coutinho
O que causa indignação, antes de qualquer coisa, é ver uma longa lista de autoridades de Estado todas elas integrantes formais do governo eleito e em pleno exercício de funções institucionais tratadas como se fossem membros de uma quadrilha clandestina, quando o que se tem, à luz dos fatos públicos, é que foram chamadas para reuniões de trabalho, para despachos, para análise de cenários, para discutir política pública e transição de governo. Não há um único ato formal de convocação que diga “reunião de complô” ou “encontro de associação criminosa”; o que há, nos registros oficiais, são reuniões de governo. E, mesmo assim, o discurso jurídico que se constrói contra essas pessoas parece ignorar por completo a fronteira entre ato político, ato administrativo e ato penalmente relevante.
Nominalmente, foram arrastados para o rótulo de “trama golpista” o ex-presidente Jair Messias Bolsonaro e figuras centrais do governo, como o general da reserva Walter Souza Braga Netto, o delegado e ex-ministro da Justiça Anderson Gustavo Torres, o almirante Almir Garnier Santos, o general da reserva Augusto Heleno Ribeiro Pereira, o general Paulo Sérgio Nogueira de Oliveira, o deputado e ex-diretor da Abin Alexandre Ramagem Rodrigues e o tenente-coronel Mauro César Barbosa Cid. A eles se somam, ainda, militares de alta e média patente e agentes de Estado vinculados às Forças Armadas e à Polícia Federal: Hélio Ferreira Lima, Rafael Martins de Oliveira, Rodrigo Bezerra de Azevedo, Wladimir Matos Soares, Sérgio Ricardo Cavaliere de Medeiros, Bernardo Romão Corrêa Netto, Fabrício Moreira de Bastos, Márcio Nunes de Resende Júnior, Ronald Ferreira de Araújo Júnior, além de Ângelo Denicoli, Reginaldo Abreu, Marcelo Bormevet, Ailton Gonçalves Moraes Barros, Giancarlo Rodrigues, Guilherme Almeida e Carlos Rocha. Todos, sem exceção, ocupavam ou ocuparam postos formais do Estado brasileiro, com agenda oficial, hierarquia, cadeia de comando, despacho, memorando, ordem de serviço. Todos foram, em última análise, chamados para reuniões de trabalho, ainda que com forte carga política e institucional, jamais para integrar um “pacto secreto” típico da criminalidade organizada como se vê no Código Penal.
E aqui entra o ponto jurídico que torna esse cenário ainda mais inquietante: o tratamento dado a esses encontros como se fossem atos preparatórios de um crime consumado. No Direito Penal brasileiro, atos preparatórios são aquelas primeiras etapas voltadas à eventual prática de um crime, mas que, por si sós, são neutras ou lícitas. São condutas que, vistas isoladamente, não possuem carga ilícita: comprar uma faca, pesquisar um tema sensível na internet, reunir-se para discutir política, organizar dados, pedir pareceres, convocar reuniões. A neutralidade é inerente a esses atos. Comprar uma faca pode ser para cozinhar; pesquisar sobre armamentos pode ser para fins acadêmicos; reunir ministros e comandantes pode ser, e normalmente é, para tratar da conjuntura institucional. O que transforma um ato neutro em algo suspeito é a intenção subjetiva do agente o dolo mas essa intenção não se enxerga olhando apenas para o rótulo “reunião” na agenda, e sim para atos que iniciem, concretamente, a execução de um crime.
Outro traço essencial dos atos preparatórios é a sua falta de idoneidade para consumar, por si sós, qualquer crime. Estocar material, estudar cenários, escrever rascunhos, discutir hipóteses: nada disso, isoladamente, atinge um bem jurídico penalmente protegido. Da mesma forma que estocar material para montar um explosivo não causa, por si só, explosão alguma, reunir autoridades em um gabinete não derruba instituições. Para que se fale seriamente em crime, é preciso distinguir com rigor o que é mero ato preparatório do que é ato de execução. Atos preparatórios antecedem o início da execução e são remotos, genéricos; atos executórios, ao contrário, iniciam a prática do verbo nuclear do tipo penal e, em cadeia, conduzem direta e imediatamente à consumação. A doutrina majoritária adota, no Brasil, referenciais objetivos: começa a execução quando o agente pratica o primeiro ato que integra a figura típica, que já coloca o bem jurídico em perigo concreto.