A gratuidade não isenta de responsabilidade àquele que generosamente
permite a outrem usufruir de um serviço ou bem em sede de mera cordialidade.
Neste caso, o que haverá é um tratamento mais condescendente da norma jurídica
para com o ofertante, em virtude da incidência da responsabilidade subjetiva
pela qual caberá à vítima provar a culpa daquele a quem imputa a
responsabilidade pelo dano que lhe fora causado. Essa situação na prática
desfavorece à vítima do dano pelas enormes dificuldades probatórias, o que
resulta, em boa parte dos casos, em inexistência de indenização.
Noutro plano, inexiste qualquer dúvida sobre a possibilidade de
aplicação do Código de Defesa
do Consumidor para
resolução de situações concernentes a furtos e danos a veículos nas
dependências de estabelecimentos comerciais.
Com efeito, a Lei nº 8.078/90
disciplina as relações de consumo no Brasil, bem mais favorável ao consumidor
do que a tutela que se mostra por vezes viável através do Código Civil.
Pela teoria do risco proveito aquele que usufrui do bônus econômico, em virtude
de uma atividade empresarial, deverá arcar também com o ônus e prejuízos que
essa atividade gerar ao consumidor.
Nesta linha, a entidade que oferta estacionamento, com o intuito de
lucro, será regida pelo CDC.
Aliás, a citada entidade poderá inclusive pertencer ao Estado, ocasião em que o
estacionamento poderá ser ofertado por empresas estatais que prestam serviços
ao público em geral e cobram por isso, com o objetivo de obviamente auferir
lucro. Dentre tais empresas estatais podemos, a título de exemplo, mencionar a
ECT e o Banco do Brasil.
Deste modo, como já ressaltado, excluímos desta abordagem a oferta de
estacionamento por repartições públicas com personalidade jurídica de direito
público, por não se submeterem à regência do CDC.
Nestes casos, a responsabilidade civil advirá sob a tutela de outras normas. As
fundações públicas, apesar
de serem entes com personalidade jurídica de direito
privado, não são regidas pelo CDC em virtude de não visarem o lucro na
oferta dos serviços que prestam à população.
Neste ponto, cabe uma indagação.
Seria possível aplicar o CDC para o caso de furto de veículo em
estacionamento de empresa onde não haja vigilância, emissão de ticket ou entrega das chaves, e onde o dono
do veículo somente entra no estabelecimento comercial para verificar os preços
dos produtos sem nada comprar?
Neste contexto o usuário não concede lucro ao empresário porque nada
comprou. Ele apenas entra no estabelecimento e gasta seu tempo a olhar preços
ou a tratar de outros assuntos, optando por não comprar qualquer produto. É
possível que o consumidor neste caso estivesse imbuído do desejo de comprar,
mas tenha desistido de fazê-lo ou estivesse movido pelo desejo de pesquisar
preços para uma possível compra futura. Mesmo neste caso aplica-se o CDC.
Note-se, que esta é uma situação diferente daquela em que o indivíduo
faz uso de estacionamento gratuito da empresa, onde não há entrega das chaves,
emissão de tickets ou aparato de segurança, para tão
somente ter um lugar para colocar seu veículo, sem a menor intenção de
estabelecer relação de consumo com a empresa.
Esta situação só é perceptível para a empresa mediante existência de
fiscalização física ou eletrônica. Este tipo de prova certamente opera em favor
da empresa, em caso de litigância levada a Juízo por pessoa que queira se
aproveitar da oferta de estacionamento à clientela de um estabelecimento
comercial. Nesta hipótese, a pretensão de quem teve o veiculo furtado não
poderá ser amparada pelo Código do Consumidor.
Acompanhamos o entendimento segundo o qual é possível aplicar o Código
do Consumidor em casos de danos a veículos de usuários, ocorridos no
parqueamento de estabelecimento comercial, ainda que o utente nada tenha
comprado durante sua estadia no estabelecimento comercial.
Com efeito, o ordenamento jurídico atua no sentido de conceder proteção
à pessoa em fase ainda anterior à contratação, na tutela aos interesses do
potencial consumidor, daquele que, embora não tendo ainda contratado a
prestação do serviço, possa vir, em tese, a fazê-lo, em conformidade, além de
outros dispositivos, com o art. 29 da Lei nº 8.078/90.
“Art. 29. Para os fins deste Capítulo e do seguinte, equiparam-se aos
consumidores todas as pessoas determináveis ou não, expostas às práticas nele
previstas”.
A boa-fé objetiva
deve nortear os deveres de comportamento que as partes devem seguir nas fases,
pré-contratual, contratual e pós-contratual. Assim é que a boa-fé tutelaria o
potencial cliente. A oferta postada na fase pré-contratual, faz com quem as
questões surgidas a partir dali estejam mesmo no âmbito da responsabilidade
contratual.
Na concepção de Antônio Hermam Benjamim “o que se exige é a simples
exposição à prática, mesmo que não se consiga apontar, concretamente, um
consumidor que esteja em vias de adquirir ou utilizar o produto ou serviço.”[16]
O princípio da boa-fé objetiva, considerado um princípio geral do
direito, foi inserido no direito pátrio pelo art. 4º da Lei de
Introdução ao Código Civil de
1916 e consta do art. 4º, III e
art. 51, IV do Código de Defesa
do Consumidor.[17]
Com efeito, a oferta do estacionamento é feita pelo estabelecimento a
seus clientes e à sua potencial clientela. O estacionamento “gratuito” faz
parte dos serviços ofertados pela empresa a fim de melhorar suas vendas, disto
decorre o dever de guarda dos veículos, para o caso de oferta de local para
estacionar, mesmo quando se trate de uma prestação acessória.
Como já ressaltado, a empresa não oferece cortesias desinteressadas a
sua potencial clientela. A existência de um cômodo estacionamento, no qual o
cliente estaciona seu veículo e se sente seguro, opera em favor da empresa
ofertante que se destaca perante outros estabelecimentos que não ofertem esta
comodidade. Deve pesar sobre quem ofereceu a alternativa de fácil
estacionamento, a carga de que este seja seguro, mesmo que não haja consumação.
Nesta hipótese, o nexo de causalidade entre a empresa e o cliente será
estabelecido artificialmente pelo CDC.[18]
Ressaltamos que há entendimento de que nos casos - onde não há controle
da entrada e saída de veículos, emissão de tickets, traditio ou
aparato de segurança - a responsabilidade civil pode ser amparada com base numa
“relação contratual de fato”; entretanto, apesar de tal possibilidade, entendo
que o Código de Defesa
do Consumidor, através da boa-fé objetiva é instrumento suficiente
para amparar os referidos casos, ocorridos na esfera consumerista.[19]
Da Súmula 130 do Superior Tribunal de
Justiça
O Superior Tribunal de Justiça produziu a Súmula 130 que dispõe
justamente sobre a responsabilidade da empresa por furto de veículos
localizados em seu estacionamento. O teor da referida Súmula é o seguinte, literis:
“A EMPRESA RESPONDE, PERANTE O CLIENTE, PELA REPARAÇÃO DE DANO OU FURTO
DE VEÍCULOS OCORRIDOS EM SEU ESTACIONAMENTO”.
Com efeito, o STJ com a emissão dessa Súmula debela de uma vez por todas
qualquer dúvida acerca da responsabilidade da empresa perante o cliente diante
de dano ou furto de veículos ocorridos no estacionamento ofertado pelo
estabelecimento.[20]
De 1990 até 1995 o Superior Tribunal de Justiça produziu vários acórdãos
reconhecendo a responsabilidade civil do lesante, em caso de furto de veículos
em estabelecimentos comerciais, cuja fundamentação jurídica centrava-se no
contrato de depósito e no contrato inominado de guarda e vigilância. Os
acórdãos que deram origem à Súmula 130 constam da Revista do Superior Tribunal
de Justiça, Volume 72, pp. 353-388.[21]
A relação advinda da Súmula 130 do STJ não é necessariamente uma relação
contratual, podendo muito bem enquadrar-se numa “relação contratual de fato”,
ou seja, aquela que se manifesta em virtude de um determinado arranjo fático
que une partes com interesses comuns. A natureza jurídica da responsabilidade
civil que se exara a partir da referida Súmula 130 não é exatamente nem
objetiva nem subjetiva, trata-se antes de uma responsabilidade civil presumida.
Com esteio na mencionada Súmula a responsabilidade civil da empresa por
veículos dispostos em seu parqueamento advém necessariamente de uma relação de
clientela entre o estabelecimento comercial e o usuário do estacionamento.[22]
Aliás, é a partir da relação de clientela que se exprime o nexo de
causalidade, e certamente ela não se restringe apenas à relação de consumo
realizada de imediato comprovada pela nota fiscal. A caracterização de
clientela poderá manifestar-se por uma relação de longa data entre o
estabelecimento e o cliente, caracterizada, por exemplo, através do cadastro do
cliente na própria empresa, emissão de cartão de crédito próprio do
estabelecimento ou de autorização para emissão de cheques pré-datados para
pagamento das compras realizadas naquele recinto.
A relação de clientela é apenas um dos pressupostos para a
caracterização da responsabilidade da empresa pelos veículos dos clientes
acomodados em seu estacionamento. Todavia, o uso do estacionamento pelo cliente
apenas se justifica no âmbito de uma relação de clientela imediata ou em
potencial. Assim, se o cliente vai ao estabelecimento para apenas estacionar
seu veículo, a fim de dirigir-se a outro lugar, certamente não terá direito
algum pelos danos sofridos ao seu veículo, por faltar-lhe o nexo causal, ou
seja, nesse caso não houve uma relação contratual, mas apenas um ato unilateral
sem amparo no CDC.
Apesar da Súmula 130 do Superior Tribunal de Justiça mencionar apenas as
hipóteses de dano e furto de veículos, entendemos que ela contempla ainda, por
uma questão de hermenêutica jurídica, o roubo praticado contra veículos
estacionados no pátio da empresa.
Acrescente-se que a súmula apesar de significar a pacificação de
determinada matéria, em virtude de um conjunto de decisões anteriores e
reiteradas de certo Tribunal, não obriga, em verdade, seu cumprimento aos
juízes de primeiro grau, cujo convencimento, acerca da decisão, é livre desde
que corretamente embasado na lei ou em seus elementos subsidiários arrolados no
art. 4º da Lei de
Introdução ao Código Civil.[23]
Portanto, o papel da súmula vai além da mera pacificação da
jurisprudência divergente, no que cabe também a ela orientar, servindo de
bússola aos operadores do direito, sem, entretanto, conter em si mesma o
caráter coercitivo inerente à norma jurídica. Aliás, a produção da norma
jurídica cabe, no Brasil, naturalmente ao Poder Legislativo e não ao Poder
Judiciário, a este cabe aplicar a norma jurídica advinda daquele e não
pretender subtrair-lhe a prerrogativa constitucional.[24]
Conclusão
A partir do exposto nesse artigo tem-se que os estabelecimentos
comerciais que ofertam estacionamentos aos seus clientes tem a responsabilidade
de zelar pelos veículos dispostos no pátio da empresa. Não prospera a alegação
segundo a qual a ausência de cobrança pelo estacionamento funcionaria em favor
da ausência de responsabilidade civil do empresariado. Esse dever da empresa de
indenizar os danos praticados contra veículos estacionados em seu pátio,
decorre do benefício que aufere com a captação de clientela que a oferta de
estacionamento lhe proporciona. Deste modo, o valor do estacionamento é
custeado pela clientela quando da aquisição de bens e serviços. Em virtude
disto, é possível a tutela do cliente com fulcro no CDC,
por tratar-se de um serviço aparentemente gratuito, mas que decorre de uma
relação estabelecida entre consumidor e fornecedor.
Fonte: Âmbito
jurídico e Jus Brasil